sábado, 16 de abril de 2011

Idéia Sem Matéria

Leituras culpadas, marx(ismos) e a práxis do conhecimento**


Eduardo Grüner*





Posto que n?o há leituras inocentes,
comecemos por confessar de que leituras
somos culpados

Louis Althusser




A frase de Althusser que preside este texto é –para diz?-la com uma express?o cara ao filósofo franc?s– sintomática: revela um problema consubstancial a algo que pudesse ser chamada de uma teoria do conhecimento (ou uma “gnoseologia”, ou uma “epistemologia”) que também pudéssemos chamar “marxista” (uma denominaç?o por sua vez problemática, posto que já s?o incontáveis os “marxismos” que t?m visto a luz –e muitas sombras– desde o próprio Marx até aqui). Esse problema é de difícil, se n?o impossível, soluç?o, mas seu enunciado é relativamente simples: n?o há leitura inocente, isto é, toda interpretaç?o do mundo, toda forma de conhecimento do real está inevitavelmente situada pelo posicionamento de classe, a perspectiva político-ideológica, os interesses materiais, os condicionamentos culturais ou a subjetividade (consciente ou inconsciente) do “intérprete”.



       Essa constataç?o já é a de Marx, e até certo ponto –ainda que desde perspectivas bem diferentes entre si e a do próprio Marx– havia sido também a dos philosophes materialistas do século XVIII, e o será nas primeiras “sociologias do saber” do século XX, a partir de Max Scheler ou Karl Mannheim, e o continuará sendo nas fenomenologias “sociológicas” do conhecimento no estilo de Alfred Schutz ou Harold Garfinkel. Em Marx é uma constataç?o inseparável de sua concepç?o (melhor dizendo, concepç?es, já que s?o múltiplas e mutáveis) da ideologia, seja entendida, um tanto esquematicamente, como “falsa consci?ncia” da realidade, já como (na sofisticada vers?o althusseriana, atravessada pela leitura lacaniana de Freud) consci?ncia “verdadeira” de uma realidade “falsa”, um aparentemente escandaloso paradoxo sobre a que teremos que voltar.

       Porém, seja como for, se é verdade que toda “leitura” do complexo universo do real é “culpada” de ser uma leitura em situaç?o, isso n?o significa que n?o pode haver uma leitura “objetiva”, “científica”, “universal” dos fenômenos da realidade (e muito em particular da realidade social e histórica, t?o constitutivamente atravessada por aqueles interesses e posicionamentos), e que nosso conhecimento, em conseqü?ncia, está necessariamente condenado ao relativismo, ao particularismo, ao subjetivismo mais radical?

       Além de tudo, a partir dos chamados “giro lingüístico”, “giro hermen?utico”, “giro estético-cultural”, etc., do século XX (embora seja um debate quase t?o antigo como a própria cultura ocidental: já podem ser encontradas suas premissas no Cratilo de Plat?o, por exemplo, e sua continuaç?o nas pol?micas entre “realistas” e “nominalistas” na Idade Média; porém é claro, é no século XX quando se torna dominante enquanto debate sobre os fundamentos de uma filosofia da cultura), temos tido que nos acostumar –ainda que para alguns ainda custe ceder a ela– ? idéia de que os sujeitos chamados “humanos” distinguem-se de qualquer outra espécie, mesmo as mais “avançadas” do reino animal, pelo fato de que n?o tem um vínculo direto e imediato com a realidade, mas sim sua relaç?o com o mundo está “mediatizada” por um complexo aparato de compet?ncia lingüística (o conceito é de Noam Chomsky) e “simbólica” em geral; de tal modo que, inclusive partindo de um ponto de vista irredutivelmente materialista cremos na exist?ncia autônoma do real com relaç?o ?s nossas representaç?es –convicç?o que, como veremos, instaura uma diferença radical com as epistemologias “pós-modernas”–, nossa “realidade” humana n?o pode menos que ser uma construç?o de nossa (maior ou menor) compet?ncia lingüístico-simbólica. Seja “construtivista” ou “de-construtivista”, a premissa é inapelável: a “realidade” do ser humano é, em uma medida decisiva, a produç?o de um aparato simbólico que n?o é de modo algum “individual” (n?o se trata de nenhum “subjetivismo” até as últimas conseqü?ncias), mas sim o resultado de um complexo processo cultural, social e histórico. Como já haviam suspeitado o próprio Max Weber e a escola do interacionismo simbólico, e como o mostrou um extraordinariamente sutil filósofo e lingüista marxista (Mikhail Bakhtin), a linguagem –e, por extens?o, todo o campo humano do simbólico-representacional– é um espaço dialógico, vale dizer, produzido na interaç?o social (inclusive conflituosa), e n?o na solid?o das “consci?ncias” individuais. E esta nova constataç?o, sem nenhuma dúvida, é um enorme avanço sobre as ingenuidades empiristas, positivistas ou materialistas vulgares. Porém que nos torna a colocar no centro de nossa quest?o: o conhecimento objetivo da realidade é impossível? O próprio Marx em sua oposiç?o ao idealismo, caiu na armadilha do positivismo, de um “objetivismo” t?o ing?nuo como o dos materialistas vulgares?

       Desta forma, n?o: ainda que os problemas aqui apresentados sejam inumeravelmente mais complexos do que poderemos abarcar nesta exposiç?o, sustentamos que, mesmo sendo algo esquematicamente (para um maior aprofundamento n?o restará remédio sen?o remeter ? bibliografia), sim há em Marx –e desde o início em muitos dos “marxistas ocidentais” posteriores– elementos suficientes a partir dos quais abrir um leque de hipóteses de trabalho, novamente, n?o para resolver definitivamente, mas sim para colocar em seus justos termos, essa problemática. Isso sim, com duas condiç?es:



1] A partir das quais, acabamos de sublinhar: é inútil, além de danoso, pretender encontrar já acabados de uma vez para sempre esses elementos no próprio Marx; semelhante pretens?o somente pode conduzir, no melhor dos casos, a preguiça intelectual, e no pior, a mais grosseira rigidez dogmática;

2] para compreender a verdadeira importância –e a lógica de funcionamento– desses elementos, é necessário deslocar o que poderíamos chamar um discurso “binário” (e profundamente “ideológico” no mal sentido do termo), que pensa a quest?o do conhecimento sobre o eixo dos “pares de oposiç?o” mutuamente excludentes (exemplo: sujeito/objeto; material/simbólico; pensamento/aç?o; indivíduo/sociedade; estrutura/história, etc.): melhor se trataria de pensar em cada caso a tens?o dialética, o conflito entre esses “pólos”, que somente podem ser percebidos como tais precisamente porque a relaç?o entre eles é o que os constitui, o que lhes destina seu lugar.


Tendo em conta essas duas premissas básicas, podemos começar a abordar a quest?o.



Um critério fundante: a práxis



“Até agora os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo; trata-se agora é de transformá-lo”. A famosíssima tese XI sobre Feuerbach pode ser tomada, entre outras coisas, como um enunciado de epistemologia radical, ou como um ultra condensado “discurso do método” de Marx. Demasiado amiúde, por desgraça, tem sido lido unilateralmente, no espírito de um materialismo vulgar ou um hiperativismo mais ou menos espontaneísta que desfaz todo trabalho “filosófico” de interpretaç?o (vale dizer, ao menos em certo sentido do que já falamos sobre produç?o de conhecimento) a favor da pura “transformaç?o” social e política. N?o faz falta enfatizar qu?o alijada das intenç?es de Marx –um dos homens mais cultos e mais teoricamente sofisticados da modernidade ocidental– pode estar este tipo de antiintelectualismo estreito. Contudo, o que aqui nos importa é outra coisa. Na verdade, Marx está dizendo em sua tese algo infinitamente mais radical, mais profundo, inclusive mais “escandaloso” que a idiotice de abandonar a “interpretaç?o do mundo”: está dizendo que:


1]  a transformaç?o do mundo é a condiç?o de uma interpretaç?o correta e “objetiva”; e

2] vice-versa, dada essa condiç?o, a interpretaç?o já é, de certa forma, uma transformaç?o da realidade, que implica, em um sentido amplo, mas estrito, um ato político, e n?o meramente “teórico”.
     

De outra maneira, é o que encerra o conceito de práxis (que Marx toma, obviamente, dos antigos gregos). A práxis n?o é simplesmente, como se costuma dizer, a “unidade” da teoria e a prática: dito assim, isto suporia que “teoria” e “prática” s?o duas entidades originais e autônomas, preexistentes, que logo a práxis (inspirada pelo g?nio de Marx, por exemplo) viria “juntar” de alguma forma e com certos propósitos. Porém, sua lógica é exatamente a inversa: é porque sempre há práxis –porque a aç?o é a condiç?o do conhecimento e vice-versa, porque ambos pólos est?o constitutivamente co-implicados– que podemos diferenciar “momentos” (lógicos, e n?o cronológicos nem ontológicos), com sua própria especificidade e “autonomia relativa”, mas ambos no interior de um mesmo movimento. E este movimento é o movimento (na maior parte das vezes “inconsciente”) da própria realidade (social e histórica), n?o o movimento, nem do puro pensamento “teórico” (ainda que fosse na cabeça de um Marx) nem da pura aç?o “prática” (ainda que fosse a dos mais radicais “transformadores do mundo”).

       O que Marx faz –essa é sua “genialidade”– é simplesmente mostrar que esse é o movimento da realidade, e denunciar que certo pensamento hegemônico (a “ideologia dominante”, para simplificar) tende a ocultar essa unidade profunda, a manter separados os “momentos”, promovendo uma “divis?o social do trabalho” (“manual” versus “intelectual”, para dizer o básico), com o objetivo de legitimar o universo teórico da pura “interpretaç?o” como patrimônio do Amo, e o universo prático da pura “aç?o” como patrimônio do Escravo, já que a classe dominante sabe perfeitamente –mesmo quiçá n?o sempre o saiba conscientemente– que nem a pura abstraç?o da teoria, nem o puro “ativismo” da prática, tem realmente conseqü?ncias materiais sobre o estado de coisas do mundo. Ou, em outras palavras, que n?o produz verdadeiro conhecimento da realidade, no sentido de Marx. Nunca melhor ilustrada esta tese que na famosa alegoria que constroem Adorno e Horkheimer, em sua Dialética do esclarecimento, a propósito do episódio das Sereias na Odisséia de Homero: o astuto e racionalizador capit?o Ulisses –metaforicamente, o Burgu?s–, atado ao mastro de seu barco, pode escutar (“interpretar”) o canto das sereias, porém n?o pode atuar; os ansiosos marinheiros –metaforicamente, o Proletariado–, com seus ouvidos tampados pela cera que Ulisses lhes administrou, podem atuar, remar o barco, mas n?o podem escutar. Nenhum dos dois pode realmente conhecer essa fascinante música: Ulisses n?o quer faz?-lo –quer simplesmente receb?-la, gozá-la passivamente–, os marinheiros n?o podem faz?-lo –ocupados, “alienados” em sua tarefa prática, nem sequer inteiram-se de sua exist?ncia.

       Desta forma: essa tese de Marx é, desde já, e como dissemos, um enunciado político-ideológico revolucionário. Porém, é ao mesmo tempo (obedecendo ? própria lógica da práxis) um enunciado filosófico-epistemológico da máxima transcend?ncia. O é no sentido no qual Marx fala de uma realizaç?o da filosofia, isto é, em um triplo sentido: 1) é sua culminaç?o; 2) é sua fus?o com a realidade material; 3) é sua (paradoxal) dissoluç?o, ao menos em sua forma tradicional, “clássica”, que em sua época –e na própria biografia intelectual do primeiro Marx– n?o é outra que a da (riquíssima e complexa) tradiç?o idealista alem? que vai –para apenas mencionar os nomes mais paradigmáticos– de Kant a Hegel, passando por Fichte e Schelling.

       Trata-se é claro de autores complexos e muito diferentes entre si, que de modo algum podem ser postos “no mesmo saco”, como se diz vulgarmente. Tampouco todos t?m o mesmo significado naquela biografia intelectual de Marx: sem dúvida o pensador (deveríamos dizer: o “pensador-ator”?) de Treveris “aprendeu” de Hegel muito mais que dos outros, contudo, esse “aprendizado” realizou-se plenamente –no sentido antes definido– somente quando Marx, por assim dizer, fundiu Hegel com a realidade material (social-histórica) que ? parte de “ativista” que havia nele lhe importava transformar. Porém, em todo caso, o que todos esses gigantes da filosofia ocidental t?m em comum, além de (mas vinculado com) seu “idealismo”, é sua impossibilidade de superar (também no sentido da Aufhebung hegeliana) essa cis?o entre “teoria” e “prática”, ou, dito mais “filosoficamente”, a separaç?o radical entre sujeito e objeto. E se dizemos “além de” (ainda que no caso particular dos alem?es, vinculado com) seu idealismo, é porque na verdade essa “impot?ncia” n?o faz mais que recolher, condensar e levar ?s últimas conseqü?ncias toda a tradiç?o dominante –com poucas exceç?es, como seriam os casos de um Maquiavel ou um Giambattista Vico e, em outro sentido, de um Espinosa– da filosofia e da teoria do conhecimento ocidental e moderna, ao menos a partir do Renascimento. E isso inclui n?o somente o “idealismo”, mas também (e talvez especialmente) o empirismo, o materialismo unilateral, e logo o positivismo.

       De fato, a “divis?o do trabalho” própria do modo de produç?o capitalista (a “fragmentaç?o das esferas da experi?ncia” as quais se referia Max Weber, que estava longe de ser marxista ou “antiburgu?s”, mas muito perto de ser um dos intelectuais mais lúcidos da modernidade) imp?e necessariamente essa separaç?o. E n?o é óbvio que antes do capitalismo ela n?o existisse: só que agora resulta muito mais evidente, e mais dramaticamente percebida, já que nenhum ecumenismo teológico resulta por si mesmo suficiente para ocultá-la sob o manto piedoso da vontade de Deus.

       O paradoxo é que essa separaç?o se aprofunda e se faz, como dizíamos, mais evidente e dramático precisamente porque a nova era “burguesa” necessita promover um conhecimento mais acabado, preciso e “objetivo” da realidade. Ao contrário do que sucedia no modo de produç?o feudal, por exemplo, a ci?ncia e sua aplicaç?o ? técnica é agora uma força produtiva decisiva para o ciclo produtivo (e re-produtivo) do sistema. Para conseguir esse melhor conhecimento da “maquinaria” do Universo –já a partir do século XVII, com Descartes, Leibniz, e muitos outros, imp?e-se esta sugestiva metáfora “mecânica” – é que se torna imprescindível a distinç?o entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido (ou, em todo caso, o objeto a conhecer, isto é, a construir). O impulso –outra vez, necessário para a lógica do funcionamento produtivo da “maquinaria” capitalista– de uma dominaç?o da natureza: esse impulso para o que Weber chamará racionalidade formal, ou a Escola de Frankfurt racionalidade instrumental, requererá que o sujeito dominante separe-se do objeto dominado. Que o indivíduo, portanto, separe-se da natureza, d? um passo atrás para observá-la, para estudá-la. E n?o somente da natureza: uma vez instaurada e transformada em dominante esta lógica, toda a nova “realidade” –n?o importa qu?o fragmentada apareça na experi?ncia dos sujeitos particulares– ficará sujeita ? cis?o. Também a social, a política, a cultural: é nesta época que pode aparecer a idéia liberal de um “indivíduo” separado da (quando n?o enfrentado com a) comunidade social ou o Estado, quando nas épocas pré-modernas os sujeitos eram um componente indissociável da comunidade política, da ecclesia, do socius, chame-se polis, ou Cidade de Deus, ou o que corresponda a cada momento.

       É também nesta época que pode aparecer na arte, para citar um exemplo ilustrativo, a perspectiva, esse “descobrimento técnico” da pintura renascentista que permite retratar o indivíduo em primeiro plano, separado de/dominando seu entorno. É nesta época que, na literatura, pode aparecer –e ser um tema central desse novo g?nero literário da modernidade que se chama “novela”– a subjetividade individual, com todos os desgarramentos e conflitos que produz, precisamente, sua separaç?o, seu isolamento, sua “alienaç?o” da natureza e da comunidade humana. (E a propósito destes exemplos vale a pena recordar que para Marx –igualmente para todo o idealismo alem?o a partir de Kant e dos românticos– a Arte é também uma forma de conhecimento, como o demonstram seus permanentes refer?ncias a, que n?o s?o meramente decorativos ou exemplificadores, Homero e os trágicos gregos, a Dante, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Schiller, Heine, Defoe, etc.). É nessa época, para dizer tudo, que pôde (e deve) inventar-se a noç?o de “indivíduo”, como uma entidade distinta do resto do universo, e cuja miss?o é conhecer e dominar esse universo.

       É claro que, repetimos, esta separaç?o epistemológica (n?o “real”) entre o sujeito e o objeto é necessária para uma concepç?o do conhecimento que passa pela dominaç?o da natureza –e, a fortiori , dos membros das classes subalternas. E n?o é quest?o de negar que, ainda tendo em conta os limites que a divis?o do trabalho no capitalismo imp?e ? expans?o do conhecimento, o movimento do saber na modernidade tem um grande valor: n?o somente pelo o que significou, na história da cultura, como frente de combate contra o obscurantismo e a superstiç?o, mas também porque esse movimento (insistimos: ainda descontando a fictícia cis?o sujeito/objeto) é o que fez possível a ci?ncia moderna, tal como a conhecemos.

       Porém, n?o é quest?o de negar que essa possibilidade da ci?ncia moderna é a contrapartida (“dialética”, por assim dizer) da lógica –mais ainda: da concreta práxis– da dominaç?o: as duas coisas s?o verdadeiras, e sob as estruturas de uma sociedade de classes desigual, est?o necessariamente em conflito. Quando esse conflito n?o se resolver (e enquanto as estruturas de dominaç?o permanecerem em seu lugar o conflito n?o pode resolver-se), aquele “obscurantismo” n?o poderá ser definitivamente eliminado, e retorna indefectivelmente, inclusive encaixado nas novas formas do conhecimento científico. Daí que a lúcida advert?ncia de Adorno e Horkheimer, no mesmo texto que já citamos, a propósito da mesma raz?o cujo objetivo era dissipar as névoas dos mitos obscurantistas, corre o risco de transformar-se em um mito igualmente tenebroso (e, em certo sentido, no mais perigoso de todos, posto que aparenta ser outra coisa).



O problema da “invers?o” da dialética hegeliana



Consequentemente: trata-se de um conflito que, certamente, n?o escapava aos honestos filósofos do idealismo alem?o: novamente, de Kant a Hegel há uma aguda percepç?o do profundo problema (n?o somente epistemológico, mas também antropológico e inclusive “metafísico”) que lhe apresenta ? realidade humana, histórica, a separaç?o sujeito/objeto. Inclusive, ao menos em certo sentido, pode se dizer que tanto a Crítica da raz?o Pura de Kant como a Lógica de Hegel s?o tentativas monumentais de resolver esta quest?o. E já sabemos qual pode ser a raz?o, para Marx, do caráter parcialmente falido destes monumentos da filosofia moderna: seu idealismo. De fato: para estes grandes idealistas o conflito pertence ao puro e abstrato plano do pensamento, enquanto para Marx encontra sua “base material” no plano da realidade social e histórica, e, portanto n?o pode ser “superado” por nenhuma Aufhebung que n?o provenha da práxis, de uma transformaç?o conjunta da realidade e do pensamento.

       Isto n?o significa de maneira alguma que para Marx os conflitos do “pensamento” sejam um mero “reflexo” dos da “realidade” –como quiseram entender muitos “marxistas” que, neste registro, ficam reféns do materialismo mais vulgar–: isso equivaleria, precisamente, a liquidar o conceito de práxis. Justamente, entre muitas coisas que Marx resgata do idealismo alem?o, um lugar central está ocupado pela grande importância que esse idealismo alem?o –e, em particular, Hegel– outorga a uma subjetividade ativa, que n?o se resigna simplesmente em registrar os dados imediatos dos sentidos (como é o caso do empirismo ou do “sensualismo” materialista vulgar), mas também opera sobre eles para transformá-los. Essa operaç?o é a que está de alguma maneira “escondida” na celebérrima consigna de Hegel, t?o freqüentemente mal entendida, que reza: “Todo o real é racional, e todo o racional é real”: vale dizer, o real n?o consiste simplesmente na percepç?o acrítica do atualmente existente, mas também nas potencialidades de seu desenvolvimento futuro, que a raz?o “subjetiva” é capaz de trazer ? luz.

       Esse é o momento da negatividade crítica na dialética hegeliana: o da negaç?o do “real” tal como se apresenta em sua brutal imediaticidade, e a favor da produç?o do pensamento do “novo”, daquele que o real oculta em seu seio, e que pode ser mediatizado (arrancado de sua “imediaticidade”) pela raz?o. Ou seja, para abreviar, a favor da história –que, em uma concepç?o semelhante, n?o recobre unicamente a dimens?o do passado, mas sobretudo, a do futuro. Repetimos: essa “negatividade crítica” op?e-se ? aceitaç?o passiva do “realmente existente”, a um empirismo cru que n?o casualmente –porque a linguagem é sábia– adotará, em sua forma “reativa” (e reacionária) contra esta concepç?o criticamente negativa o nome de positivismo. E, neste sentido, a “teoria do conhecimento” implícita na dialética hegeliana, bem merece qualificar-se de potencialmente revolucionária. Contudo, a atualizaç?o desta “pot?ncia” choca, outra vez, com os limites de seu idealismo: a “revoluç?o” hegeliana limita-se ao plano do pensamento puro, já que parte da premissa de que é ele (sob a forma da Idéia, do Espírito Absoluto) o verdadeiro, sen?o único, protagonista da História. O “real” que o pensamento ativo pode contribuir para transformar é algo já produzido pelo próprio pensamento, sob a forma “objetiva” do Espírito. E é por este limite que, paradoxalmente, o monumental sistema filosófico e histórico de Hegel, indo inclusive contra suas próprias premissas, fica “congelado” no Estado Ético, encarnaç?o do Espírito na história terrestre, e transposiç?o “espiritualizada” do muito real Estado Prussiano de 1830.

       Fazia falta, pois, que viesse um Marx introduzir o já discutido critério da práxis material (social e histórica) para extrair desse núcleo potencial todas suas possibilidades n?o realizadas. Isso significava resgatar o “método” dialético hegeliano tanto como o materialismo vulgar do duplo impasse no qual estavam encerrados: pura Idéia sem aut?ntica materialidade sócio histórica de um lado, pura Matéria inerte sem movimento da subjetividade crítica do outro. A práxis era a “terceira excluída” entre estes dois pólos, que agora vem totalizar (já teremos ocasi?o de discutir esta noç?o que devemos a Sartre) essas perspectivas truncadas.

       A operaç?o realizada por Marx passou para a história sob a famosa rubrica da invers?o de Hegel –rubrica sem dúvida autorizada pela n?o menos famosa express?o de Marx acerca da necessidade de “pôr a dialética sob seus pés”. Porém, aqui é necessário sermos extremamente cuidadosos. O enunciado de Marx é, antes tudo, uma metáfora, solidária daquela outra segundo a qual os “atrasados” alem?es, incapazes de levar a cabo na realidade a revoluç?o burguesa que os franceses haviam feito em sua própria materialidade histórica de 1789, a haviam “realizado” na cabeça de seus filósofos, e muito especialmente na de Hegel. Porém, se esta metáfora é tomada com excessiva literalidade, corremos o risco de n?o perceber a enorme profundidade e radicalidade da operaç?o, que n?o consiste em uma mera “síntese” (no sentido vulgarizado do termo), em uma “terceira via” ou um acerto eclético entre a dialética idealista e o materialismo vulgar, sen?o em outra coisa, radicalmente diferente: introduzir a práxis na dialética n?o é inverter Hegel em uma relaç?o de simetricamente, mas sim deslocar completamente a quest?o, para mudar diretamente as regras do jogo.

       É certo que Althusser sem dúvida exagera ao falar de sua célebre “ruptura epistemológica” (de Marx com Hegel) como de um corte profundo e absoluto a partir do qual temos outros (o “maduro”) Marx, que n?o teria a ver com seu antigo mestre; depois de tudo –e poder-se-ia mostrar que a própria teoria althusseriana avaliza esta consideraç?o–, a “ruptura” seria por definiç?o impossível sem a prévia exist?ncia do sistema hegeliano: em certo sentido, pode-se dizer que o célebre “corte” é interior ? dialética, como uma dobra da mesma sobre si mesma. Entretanto, por outro lado –e aí tem raz?o Althusser, com as prevenç?es expostas– também é verdade que essa “dobra” desarticula todo o sistema e o “rearma” em um sentido muito distinto. Por uma simples raz?o: mudar o objeto da dialética –pela práxis material em lugar da Idéia, para simplificar– é mudar toda a estrutura do sistema, já que seria, precisamente, antidialético pretender que o “método” dialético fosse um tipo de pura forma ou de casca vazia que pudesse ser aplicado a qualquer objeto (e neste sentido, um pouco provocativamente, poder-se-ia dizer que Marx, estritamente falando, é mais hegeliano que Hegel, já que sua operaç?o “descongela” a própria dialética hegeliana, retirando o obstáculo idealista tanto como o do materialismo vulgar). N?o se trata, pois, de uma simples “invers?o” do objeto ou da relaç?o causa/efeito –na qual a Idéia fosse uma conseqü?ncia da Matéria, como quiseram os materialistas vulgares– mas também do “método” em seu conjunto, para passar a outro sistema de “causalidade”, cujo fundamento, reiteremos, é a práxis.

       Em uma palavra, e para resumir este nó de quest?es: Marx tenta resolver, mediante a introduç?o da práxis da história material como critério básico do “complexo” conhecimento transformador/transformaç?o conhecedora, o falso (ou, melhor: “ideológico”) dilema entre a Idéia sem matéria e a Matéria sem idéia. Porém, é claro, esta constataç?o está ainda longe de resolver –ou sequer de colocar adequadamente– todos nossos problemas para determinar a possibilidade de chegar a uma verdade “objetiva” que tem esta nova teoria do conhecimento. Teremos na continuaç?o que desenvolver ao menos algumas destas quest?es.



Da “consci?ncia de classe” ? “conting?ncia”



Acima insistimos sobre o modo como Marx resgata do idealismo alem?o (e muito especialmente de Hegel) o papel de uma subjetividade ativa e crítica na práxis da transformaç?o/conhecimento. Mas, de que classe de sujeito trata-se quando falamos desta “subjetividade”? Quem ocupa, nesta “revoluç?o teórica”, o lugar do Espírito “autocognoscente” hegeliano? Um marxista responderia, imediatamente e sem vacilar: o proletariado, essa classe universal da qual Marx fala. N?o é uma má resposta, na medida em que ao menos lança uma primeira pista sobre o caráter geral deste sujeito: n?o se trata de uma subjetividade individual e sim coletiva. Marx sai da perspectiva estritamente “individualista” que v? o sujeito como uma mônada encerrada em si mesma da qual falamos anteriormente. Todavia, por que precisamente o proletariado –e n?o, por exemplo, a fraç?o intelectual mais teoricamente avançada ou ilustrada da burguesia ou pequena burguesia (a qual pertencia o próprio Marx, e a imensa maioria dos filósofos e pensadores modernos, incluindo os mais “revolucionários”)? Acaso n?o sabemos, pelo mesmo Marx, que em virtude de sua própria exploraç?o o proletariado é uma classe “alienada”, e em conseqü?ncia incapacitada para alcançar por si mesma o Saber universal? E, para pôr-nos um pouco mais “filosóficos”: por que, em virtude de que privilégio especial teria uma parte da sociedade a capacidade “inata” de atingir o todo do conhecimento? Sendo uma categoria particular como pode o proletariado ser a classe universal?

       Estas perguntas s?o suficientemente complexas e provocativas para que avancemos com cuidado em um terreno movediço. Primeira quest?o: é necessário diferenciar, analiticamente, o proletariado como categoria teórica do proletariado como realidade sociológica, como coletivo humano “realmente existente”. No primeiro caso, define-se (o define Marx, classicamente) como aquela “classe” de homens e mulheres despossuídos de todo meio de produç?o, e t?o somente proprietários de sua força de trabalho, essa mercadoria que est?o obrigados a vender ao capitalista, e em conseqü?ncia produzir uma cota de mais valia para o dito capitalista, etc. No segundo, trata-se de uma realidade empírica extraordinariamente complexa e mutável, com um alto grau de determinaç?es concretas que variam de sociedade para sociedade, articulando-se com igualmente variáveis condiç?es sócio-econômicas, políticas, culturais e ainda psicológicas. A diferença entre ambos os registros é homóloga ? que faz o próprio Marx entre um modo de produç?o e uma formaç?o econômico-social. O modo de produç?o, assim como o proletariado enquanto categoria, s?o abstraç?es do pensamento; a formaç?o econômico-social, assim como cada proletariado particular, s?o realidades histórico-concretas. N?o é, obviamente, que n?o exista uma relaç?o entre a abstraç?o intelectual e o objeto histórico: s?o, por assim dizer, mutuamente includentes, “coextensivas”, porém, em diferentes registros do real. A confus?o entre ambas as formas só poderia conduzir aos mais aberrantes equívocos. (Como se compreenderá, n?o vamos nos meter aqui na bizantina discuss?o sobre se o proletariado continua existindo, em nosso “capitalismo tardio” e “globalizado”, tal como o pensou Marx, ou se é necessário redefini-lo totalmente ou inclusive dizer lhe “adeus” como fizeram alguns; já se verá que, aos efeitos do que nos interessam agora, esse debate é ocioso.)

       Desta forma: referir-se ao proletariado como classe universal é referir-se ? primeira destas duas formas, como deveria resultar óbvio: mal se poderia falar de uma universalidade, digamos, existencial ou empírica, muito menos de uma “equival?ncia”, entre o proletariado de Londres ou Copenhague e o de Addis Abebba ou Bogotá. Trata-se de determinar o lugar estrutural que o proletariado ocupa na configuraç?o lógica do modo de produç?o capitalista.

       Esse lugar, para diz?-lo rapidamente, é o da produç?o do mundo das mercadorias, que é o mundo da “realidade” capitalista. Ou, melhor dito (e aqui seguiremos de perto a célebre análise de Marx no capítulo I de O Capital): o mundo das mercadorias –o de sua exist?ncia acabada como objetos de circulaç?o e consumo– é o mundo imediatamente visível do capitalismo, mas ele n?o é tudo que há: ele é somente o resultado de um processo prévio que, em sua forma essencial, permanece “invisível aos olhos”. A saber: o processo de produç?o propriamente dito fez possível a exist?ncia do mundo visível. Para fazer outra comparaç?o simples: o que se v? é a obra que se representa no palco, porém essa peça teatral n?o existiria se n?o tivesse existido todo um complexo processo prévio (a escritura do texto, o desenho da cenografia e do vestuário, a “posta em cena”, a direç?o e marcaç?o dos atores, os ensaios, etc.), essa esfera das relaç?es de produç?o da qual Marx fala, que é onde verdadeiramente produziram-se as condiç?es de exist?ncia do capitalismo “visível” (começando pela mais valia, que somente será realizada na esfera da circulaç?o: porém, n?o foi aí gerada).

       Vale dizer: a totalidade do real visível somente pode aparecer como tal totalidade precisamente porque está incompleta, porque deixa “fora da cena” aquele “trabalho” que lhe dá exist?ncia. O conhecimento da totalidade implicaria, pois, na restituiç?o ao “Todo” dessa “Parte” que é, como dizíamos, imediatamente n?o-visível. Contudo, precisamente, como essa parte n?o é perceptível pelos sentidos, somente pode ser reposta por mediaç?o da raz?o (da mesma maneira, digamos, que Copérnico ou Galileu tiveram de acudir ? raz?o, ao cálculo matemático, para demonstrar a verdade cosmológica contra a falsa evid?ncia empírica de que o sol “nasce” no leste e se “p?e” no oeste). Isso é precisamente o que significa a enigmática frase de Althusser que citávamos no começo: é a realidade que é “falsa”, n?o no sentido de que seja falso o que vemos (o sol efetivamente “nasce” no leste, o capitalismo efetivamente contém as esferas de circulaç?o e consumo), mas sim no sentido de que isso que vemos é apenas uma parte da realidade –é um efeito, mas n?o a causa em si mesma, do processo completo em que consiste a realidade. Nossos sentidos n?o nos “enganam”, entretanto n?o s?o suficientes.

       Porém, se ficássemos simplesmente com isto, estaríamos de volta ao lugar em que havíamos deixado Hegel: o de uma “Raz?o” auto-suficiente e plenamente autônoma, capaz por si mesma de “despejar”, no puro plano das idéias, os enigmas do mundo. Novamente, para entender a especificidade do conhecimento na teoria de Marx é necessário reintroduzir o critério da práxis. Somente a atividade transformadora, em um sentido muito amplo do termo, pode gerar o tipo de raciocínio que seja capaz de captar a relaç?o de tens?o ou de conflito n?o resolvido entre a (falsa) totalidade aparente apresentada pelo capitalismo e o (invisível aos olhos) processo de produç?o do real. Somente essa atividade transformadora, que inclui a “subjetividade crítica”, pode realizar o processo de totalizaç?o do real.

       Desta forma, quem, que coletivo social dos existentes no capitalismo, realiza, por definiç?o, essa atividade transformadora, esse trabalho produtor do “novo”, que pode postular-se como modelo “universal” de um conhecimento baseado na práxis? O proletariado, obviamente. É ele que está diretamente vinculado, de maneira protagônica, ao processo de produç?o do real, e quem, portanto, está em condiç?es de conseguir um potencial conhecimento do Todo. Entretanto, atenç?o: outra vez, estamos falando aqui do proletariado enquanto categoria teórica. O proletariado “realmente existente”, já sabemos, está alienado, prisioneiro da cis?o sujeito/objeto, etc. É –para retomar uma terminologia que Marx herda também de Hegel– uma classe em si, mas n?o ainda para si. De maneira que quando falamos do “proletariado” como sujeito da práxis transformadora/conhecedora, estamos falando n?o de um coletivo empírico, mas sim de uma classe, que é (como seu nome indica), uma construç?o teórica. O “proletariado” real transforma o mundo, faz, sem “saber” que o faz. Por sua vez, o “intelectual crítico” –inclusive um como Marx– “sabe” o que o proletariado faz, mas n?o pode ocupar seu lugar como sujeito da transformaç?o: ao cabo pode, metaforicamente, imitar em sua cabeça o trabalho de transformaç?o que o proletariado realiza sobre a matéria (“imitar”, no sentido aristotélico da mimesis: reproduzir a lógica do trabalho da “natureza”, que segundo Aristóteles é o que faz o artista; porém, é claro, a obra de arte n?o é, n?o pode confundir-se com, a natureza).

       Isto é de grande importância que fique claro, em primeiro lugar por raz?es políticas, já que a supress?o da diferença entre a práxis do proletariado e o “saber” intelectual produziu as deformaç?es de um vanguardismo “substituísta” que em seu momento deu no stalinismo e similares. Em uma palavra: o “intelectual crítico” tem, sem dúvida, o importante papel de antecipar no plano das idéias a passagem do em si ao para si, colocando-se no ponto de vista do “proletariado” (que é, justamente, o da práxis), e essa é sua diferença radical com o intelectual “burgu?s”, no qual “burgu?s” n?o se refere necessariamente a um pertencimento empírico ? dita classe social –ainda que seja a mais provável– e sim ? posiç?o “burguesa” frente ao conhecimento, da que em seguida falaremos.

       Porém, antes é necessário esclarecer algo fundamental, sob risco de cair em excessivo reducionismo ou inclusive “sectarismo”: o “intelectual crítico” n?o necessita indispensavelmente ser consciente de que está realizando esse trabalho mimético que reproduz a lógica da práxis; obviamente, é preferível que o seja, mas o que realmente importa é o que faz do ponto de vista intelectual. Como Marx costumava dizer, os homens devem ser julgados pelo que fazem e n?o pelo que pensam de si mesmos: isso vale tanto para os autoproclamados “intelectuais críticos” que inconscientemente assumem, em sua própria prática intelectual, o “ponto de vista” da “burguesia”, como vice-versa. Assim, nada disto significa que o intelectual “burgu?s” n?o possa produzir conhecimentos aut?nticos: somente –o que n?o é pouco– significa que esses conhecimentos ser?o um momento, e n?o a “totalidade”, de um conhecimento “totalizador” do real. E aqui é imprescindível adiantar sucintamente uma quest?o que nos tornará a ocupar mais adiante: totalizador n?o significa de modo algum, totalizante. N?o se trata da ilus?o hipererudita de saber tudo sobre os “conteúdos” da realidade (aspiraç?o utópica se as há), mas sim do estabelecimento de uma lógica –baseada na práxis– de produç?o dos mecanismos de saber.

       Assim, procuramos estabelecer, ainda que esquematicamente, a diferença específica (assentada sempre sobre o critério da práxis) do método de Marx com relaç?o ao de Hegel e da teoria do conhecimento “burguesa” em geral. Deve ficar claro, mais uma vez, que esta última n?o é “burguesa” por sua origem empírica de classe (nesse sentido, também o era Marx), e sim por sua posiç?o “objetiva” frente ao conhecimento. Esperamos ter esclarecido também que o que o “intelectual crítico” pode fazer é t?o somente (ainda que muito importante) antecipar a passagem do em si ao para si (a passagem da exist?ncia ? “consci?ncia” de classe, ainda que logo devamos discutir esta última noç?o), passagem que n?o pode “substituir”, sen?o que o proletariado deverá realizar por meio de sua própria práxis coletiva e autônoma. E, finalmente, que é o proletariado que, por meio dessa práxis e graças a ela, está potencialmente em condiç?es de alcançar esse conhecimento “universal”, ainda que n?o possa atualmente faz?-lo; porém isso, obviamente, n?o é uma condenaç?o in aeternum, e sim uma situaç?o histórico-concreta. Ao cabo, na mais pessimista das hipóteses, se poderá pensar que esse conhecimento “totalizador” n?o é possível; mas, se fosse possível, somente o seria desta maneira, ao menos na hipótese (bastante menos pessimista, por certo) de Marx. E, em todo caso, a hipótese pessimista –como pode ser, por exemplo, o caso da Escola de Frankfurt e particularmente de Adorno, que com plena consci?ncia de sua formulaç?o paradoxal fala de um “marxismo sem proletariado” – parte da base de que esta é a única possibilidade: daí sua enérgica pol?mica com toda forma de positivismo, para o qual (ainda em suas variantes mais sofisticadas) a “realidade” somente é o que é, e n?o o que pode ser quando é submetida ao “juízo” da práxis, mediatizada e antecipada pela raz?o crítica. E finalmente, antes de prosseguir, aclaremos também (logo teremos que avançar sobre o tema) que o fato de que o “intelectual crítico” n?o possa substituir a práxis do “proletário” n?o significa que seu trabalho de interpretaç?o do real –esse momento relativamente autônomo do conhecimento crítico– n?o possa produzir conhecimento por si mesmo.

       Um autor marxista que viu agudamente a quest?o é o Lukács de História e consci?ncia de classe. Por que –pergunta-se Lukács essencialmente– n?o é capaz o “burgu?s” de atingir este plano “totalizador” de conhecimento? Note-se que a pergunta é por que n?o pode, e n?o por que n?o quer. Eis aqui onde se reintroduzir o problema, nada simples, da ideologia que obstaculariza esse acesso ao “universal”. Ideologia que, por definiç?o, é “inconsciente”. N?o se trata de nenhuma conspiraç?o, nem de nenhum planejado engano. Trata-se, novamente, da posiç?o de classe, do “ponto de vista” condicionado n?o tanto por um pertencimento ? classe “burguesa” e suas concepç?es do mundo, mas sim por uma identificaç?o (n?o necessariamente “interessada”) com elas. Este “ponto de vista” é, por assim dizer, impessoal: está determinado “em última instância” pela própria estrutura lógica do funcionamento da sociedade capitalista e pelo tipo de conhecimento que ela implica, e que como vimos, é necessariamente fragmentado: o “burgu?s” n?o necessita saber nada sobre a práxis, no sentido amplo que aqui vimos tratando. Mais ainda: necessita n?o saber sobre ela, des-conhec?-la (que n?o é o mesmo que “ignorá-la”), posto que tomar plena “consci?ncia” do processo de produç?o em sentido genérico (isto é, definitivamente, da história, que, como dissemos, é antes de tudo o movimento, “informado” pelo passado, da transformaç?o para o futuro) o obrigaria a admitir, a rigor de honestidade intelectual, que essa transformaç?o indetível e a produç?o de conhecimento baseado nela pode eventualmente varrer com seu próprio lugar de “classe dominante”, o qual resulta subjetivamente intolerável e objetivamente disfuncional ao sistema, daí que n?o possa saber nada com isso (como disse ironicamente Marx, a burguesia sempre soube perfeitamente que havia tido História... até que ela chegou).

       Portanto, no raciocínio de Lukács a “cultura burguesa” situa-se frente ao mundo em uma posiç?o estática e contemplativa (o que mais tarde Marcuse chamará uma cultura afirmativa do real): em posiç?o, por assim dizer, consumidora e n?o produtora do real. No fundo, o que a “burguesia”, para poder sustentar com convicç?o seu lugar de classe dominante, n?o pode saber, é como o “real” chegou a ser o que é (dito mais “tecnicamente” desde o capítulo I de O Capital, o que a “burguesia” n?o pode saber é que coisa é... a mais valia; porém aqui, ent?o, podemos apreciar toda a dimens?o filosófica que tem o descobrimento por Marx desse sintoma –como o chama Lacan– do capitalismo).

       Daí Lukács extrai sua crítica ao núcleo da teoria do conhecimento de Kant, o “pai fundador” da grande tradiç?o idealista alem?. Como se recordará –sem dúvida teremos que simplificar–nessa teoria os a priori do entendimento (categorias “inatas” como as de tempo e espaço, por exemplo) fazem com que o Sujeito Transcendental kantiano (o “Homem” abstrato como tal, sem determinaç?o histórico-concreta alguma) seja perfeitamente capaz de conhecer todos os fenômenos do Universo, mas n?o de conhecer por que há fenômenos, qual sua origem última, qual é o noumeno ou “coisa em si” que produziu a exist?ncia do real, e que em si mesmo permanece estritamente “incognoscível”, é um limite absoluto para o entendimento. Assim, Lukács, sem dúvida de maneira provocativamente redutora, mas n?o por isso menos gráfica, responde simplesmente: a “coisa em si” é... o capitalismo. Obviamente o “burgu?s” –que n?o é nenhum Sujeito “Transcendental” e sim um sujeito histórico, condicionado pela situaç?o igualmente histórica da posiç?o que ocupa na estrutura de dominaç?o– n?o pode conhecer acabadamente essa “coisa em si” porque, conforme já vimos, isso significaria, ao menos como possibilidade, o questionamento de sua própria “particularidade” histórica, que ele prefere crer que é “universal”, e, portanto eterna.

       Assim: o que vale para o “burgu?s”, n?o vale também para o “proletário”, ao menos enquanto dure sua alienaç?o? É claro que sim. Porém, com esta diferença decisiva, que já mencionamos: ao estar diretamente (ainda que também “inconscientemente”, por assim dizer) vinculado ? práxis, o “proletário” n?o pode n?o perceber (mesmo que possa momentaneamente “des-conhecer”) que o mundo do real é o resultado de um processo de produç?o, e n?o de uma enigmática “coisa em si”. É sua posiç?o de sujeito (sujeito efeito de um processo histórico, e n?o “transcendental”) o que –potencial e tendencialmente– lhe permitirá –ao contrário do que ocorre com o “burgu?s”– sair dessa alienaç?o. Como? Fazendo-se, a si mesmo, “proletário”.

       Aqui é onde é necessário reintroduzir a dialética do em si/para si com o objetivo de explicar um aparente paradoxo. O proletário, disse Lukács, enquanto sua situaç?o histórico-concreta o reduz a pura força de trabalho –isto é, a “mercadoria”– começa por viver a si mesmo como objeto (como um puro “em-si”), e tem que transformar-se em sujeito (em “para-si”). Vale dizer que, na mesma medida e pelo mesmo movimento da práxis pela qual o “proletário” conhece a matéria que está transformando, se conhece a si mesmo, aplicando o critério de que somente a transformaç?o (da matéria/de si mesmo) permite atingir o verdadeiro conhecimento; enquanto que o “burgu?s”, que viveu sempre já como sujeito “diferenciado” do mundo do real (como “indivíduo”), n?o pode transformar-se em nenhuma outra coisa. Ironicamente –se aceitamos o que dissemos a propósito de que a história é fundamentalmente impulso para o futuro– se poderia dizer que o “burgu?s” tem raz?es quando diz que a história “acabou”. Só que é necessário especificar: foi a sua história que terminou, posto que já n?o pode ir a nenhum futuro.

       Ademais –dito de passagem–, esse raciocínio demonstra que Marx (ao menos nesta leitura lukácsiana) é um pensador muito mais radical que os assim chamados “pós-estruturalistas” contemporâneos. De fato, estes criticam no marxismo um “reducionismo de classe” segundo o qual o sujeito “proletário” seria uma espécie de ess?ncia ontológica pré constituída, definida por seu lugar estrutural nas relaç?es de produç?o. E sem dúvida, tem raz?o em relaç?o a muitos dos marxismos economicistas ou “transcendentalistas” que proliferaram. Porém, equivocam-se de ponta a ponta no que diz respeito ao próprio Marx. Se o “proletário” começa por estar constituído como objeto (em-si), e logo tem que constituir-se a si próprio como sujeito (para-si) em um processo de (auto)produç?o que somente pode estar “completo” no momento do “comunismo” –vale dizer da “sociedade sem classes”, na qual portanto a “subjetividade diferencial” do “proletário” dissolve-se como tal–, n?o está claro ent?o que o “proletário” nunca é um sujeito “pleno”, e sim um sujeito que está sempre em processo inacabado (“in-finito”) de constituiç?o, satisfazendo assim as mais rigorosas normas do antiessencialismo pós-estruturalista? N?o que este debate importe muito, entretanto valia a pena uma refer?ncia marginal para despejar certos (?s vezes interessados) equívocos.

       Da mesma maneira, a lógica da mediaç?o da qual falamos faz um instante (e da qual a passagem do em-si ao para-si é um novo exemplo) n?o é necessariamente oposta ? articulaç?o pela “conting?ncia”, como tende a sustentar ?s vezes Laclau, entre outros. O segredo aí é a noç?o althusseriana de sobredeterminaç?o (que o próprio Laclau cita elogiosamente), extraída da psicanálise de Freud, e segundo a qual um elemento n?o predeterminado da situaç?o (política, social, histórica) pode aparecer “inesperadamente” para articular o processo de mediaç?o “totalizadora”. Todavia, isto t?o somente significa que: a) esse elemento “contingente” poderia n?o aparecer; b) que, quando aparece, n?o é porque uma “necessidade prévia” o fez aparecer: sua emerg?ncia pode ser perfeitamente casual; e c) que a articulaç?o específica produzida por esse elemento, e seus resultados futuros, n?o podem ser previstos matematicamente: a articulaç?o abre um campo múltiplo (ainda que n?o ilimitado) de possibilidades.

       Porém, n?o se trata de um jogo de puro azar (“conting?ncia”, neste sentido, quer dizer simplesmente que n?o estamos falando de um férreo princípio da natureza como, digamos, a lei da gravidade: a qual, se estamos tratando do campo da práxis humana, é uma obviedade): o elemento “contingente” que consegue articular uma “totalizaç?o” pode n?o aparecer, mas quando aparece, n?o é qualquer, nem se “engancha” de qualquer maneira na articulaç?o. Existem leis “tendenciais” da história que por assim dizer convocam certas “conting?ncias” e n?o outras, além de que elas apareçam ou n?o. Que na cabeça de Newton caísse uma maç? quando estava tirando sua sesta é, obviamente, uma conting?ncia que poderia n?o ter sucedido. Porém, que Newton associasse esse fato com uma série de leis físicas que lhe fizeram descobrir o princípio da gravidade dos corpos n?o é uma ocorr?ncia casual: as leis físicas existem independentemente de que naquele dia e hora caísse a maç?. Que L?nin encontrasse um trem blindado que o conduzisse de volta a Rússia para se pôr ? frente da revoluç?o é uma conting?ncia. Sem dúvida, pode-se supor que o desenvolvimento da revoluç?o tivesse sido distinto se L?nin n?o tivesse chegado, mas as “leis” (muito mais “tendenciais” que as de Newton, o admitimos) da situaç?o política que conduziu ? revoluç?o n?o dependiam da viagem de L?nin. Em uma palavra: a lógica da “mediaç?o” n?o é que se oponha ? “conting?ncia”, e sim que pode haver uma lógica da mediaç?o da conting?ncia. Precisamente por isso o marxismo (o de Marx, para começar) n?o é um determinismo: porque –ao contrário do que ocorre na dialética idealista de Hegel– n?o há uma Totalidade determinada de antem?o pelo Conceito, e sim que a materialidade dos fatos históricos pode articular diferentes (porém n?o qualquer) processos de mediaç?o totalizadora.



Da “hermen?utica da suspeita” ? interpretaç?o crítica



Tendo admitido que o “modelo” marxista para a produç?o de conhecimento é o da práxis do “proletário”, procedamos agora a descrever como é o funcionamento lógico desse modelo transposto ? práxis específica do “intelectual crítico”. O pano de fundo “filosófico” dessa lógica é o que Paul Ricoeur, celebremente, chamou a “hermen?utica da suspeita” (Ricoeur, igual a Foucault, Althusser, Roland Barthes e outros, colocam sob essa rubrica “intelectuais críticos” paradigmáticos como Marx, Freud ou Nietzsche). Vale dizer: a atitude sob a qual –como explicamos acima– eu suspeito que a “totalidade” do real n?o é o que posso perceber dela a simples vista, e que as explicaç?es sobre o real sempre podem ser submetidas a uma nova interrogaç?o, já que elas n?o “caem por seu próprio peso” (como a maç? de Newton), e sim s?o construç?es histórico-concretas que est?o consciente ou inconscientemente sobredeterminadas pela ideologia, os interesses dos grupos de poder (e também, como n?o, a identificaç?o “alienada” dos grupos oprimidos com a ideologia dominante), etc. Uma das funç?es objetivas centrais dessas explicaç?es “naturalizadas” é a de construir consenso (essencial para a “hegemonia”, em sentido gramsciano) em torno a, no limite, da estrutura própria do real. A tarefa do “intelectual crítico” é, portanto desmontar essas construç?es para demonstrar que nada tem de “naturais”, mas sim que s?o parciais e “contingentes”, no sentido antes aludido.
       Isso sup?e, por outro lado, certa teoria do simbólico. Já dissemos que o ser humano relaciona-se com (e organiza a) sua realidade por meio da mediaç?o simbólica (começando pela própria linguagem).

Porém, podem existir –simplificando muito– duas grandes teorias do simbólico (e, portanto, da interpretaç?o da realidade):



1]       Eu posso pensar que o símbolo –no sentido mais amplo possível do termo– é um “véu”, uma “máscara”, um “disfarce” que oculta ou obstaculariza a vis?o prístina de uma verdade “essencial”, “originária”, “natural”, eterna e incomovível, chamada a palavra de Deus, a “coisa em si” kantiana, ou o que se queira. Neste caso, a interpretaç?o consistirá simplesmente –e n?o que seja um processo simples, por certo– em retirar o véu ocultador para revelar (vale a express?o) esse “objeto” originário que me era ocultado. A Verdade impor-se-á ent?o com toda sua “força de Lei”, e nada poderei fazer para questioná-la. A este estilo de interpretaç?o (característico, por exemplo, da hermen?utica bíblica tradicional) chamaremos interpretaç?o passiva, já que ao que ela conduz n?o é a produç?o de um novo conhecimento, mas sim a restauraç?o de uma “realidade” que na verdade sempre “esteve ali”, só que deformada pela máscara simbólica.

2]       Eu posso pensar (como o fazem Marx, Freud ou Nietzsche, para citar somente esses paradigmas modernos) que n?o há tal verdade eterna e originária, sen?o que o que aparece como um “objeto natural” é o produto de um processo de produç?o, ou, para nosso caso, de uma construç?o simbólica e histórico-concreta. Atrás do “símbolo”, portanto, n?o encontrarei o objeto puro e duro e sim outro “símbolo”, e logo outros e outros indefinidamente. N?o é que n?o haja “objetos” (trata-se de uma perspectiva materialista), e sim de que esses objetos tenham sido utilizados como “conting?ncias” para a construç?o de configuraç?es simbólicas que servem para explicar de certa maneira o mundo do real. S?o, em uma palavra, o resultado de uma práxis, e n?o ess?ncias eternas. A “interpretaç?o”, neste caso, consiste em interrogar criticamente essas construç?es simbólicas para mostrar –inclusive para produzir– seus vazios, seus “buracos de sentido” (posto que n?o s?o Verdades eternas, nunca est?o plenamente completas, n?o podem, ao contrário da “teologia”, explicar tudo), e ent?o, construir, produzir um sentido novo sobre esses “brancos” ou aus?ncias. É claro que esse novo sentido poderá por sua vez ser submetido a interrogaç?o, precisamente porque o conhecimento assim construído é uma “verdade” histórica , e n?o “natural” (e isso vale também para o marxismo, que n?o é uma verdade eterna, e sim corresponde a determinadas condiç?es históricas: principalmente, a exist?ncia do modo de produç?o capitalista, do qual o marxismo é seu conhecimento crítico). Este estilo de interpretaç?o, ent?o, o chamaremos interpretaç?o ativa, já que nela n?o se trata de restaurar um objeto que preexistia ? interpretaç?o, mas sim de produzi-lo como objeto da práxis do conhecimento/transformaç?o (como já dissemos, o marxismo produz o “objeto” modo de produç?o capitalista pelo mesmo movimento pelo qual briga para transformá-lo: outra vez, estamos no núcleo da tese XI sobre Feuerbach).


Como disse Foucault graficamente, se este “método” é como o descrevemos, toda interpretaç?o (crítica e ativa) n?o é uma interpretaç?o da “realidade” (no sentido vulgar, n?o dialético, do termo) e sim uma interpretaç?o de uma interpretaç?o: os “objetos” da realidade que se apresentam a nossa consci?ncia já s?o produtos de “interpretaç?es” históricas. Por exemplo: Freud (ou qualquer psicanalista) n?o interpreta o sonho do paciente (como poderia o psicanalista ter acesso a um sonho alheio? Onde poderia “v?-lo”?): o que interpreta é o relato que o paciente faz de seu sonho, relato que já constitui certa “interpretaç?o” prévia. Da mesma maneira, Marx n?o interpreta a “sociedade burguesa”: o que Marx interpreta é a interpretaç?o “burguesa” da sociedade (por isso o subtítulo do Capital é Crítica da Economia Política), isto é, a construç?o simbólica (e obviamente, ideológica) que a “burguesia” produziu sobre sua própria práxis. E qual é o tensor, a alavanca última desta interpretaç?o crítica? Já o adiantamos: a interrogaç?o da suposta “Verdade eterna” enquanto ela é “suspeita” de ser por sua vez uma construç?o histórico-ideológica.

       O que significa que Marx n?o vem, digamos, de Marte, com uma teoria completamente distinta e alheia ? da (neste caso) economia “burguesa”, e se limita a chutar fora do tabuleiro uma interpretaç?o e substituí-la por outra. Isso seria um mero ato de força, e n?o uma práxis crítico-hermen?utica. O que faz Marx é começar por aceitar o “texto” da economia burguesa como verdade parcial e logo a interrogar seus “sil?ncios” ou suas inconsist?ncias. Por exemplo: Marx n?o disse que a teoria do valor (essa teoria que n?o é inventada por Marx, mas que já está em Smith ou Ricardo) seja falsa: ao contrário, justamente porque é “verdadeira” –no sentido já dito de que corresponde a certa condiç?o histórica– a interroga até as últimas conseqü?ncias (lhe pergunta, por exemplo, de onde sai o lucro do capitalista, como é possível o processo de acumulaç?o/reproduç?o do capital) e descobre que n?o pode responder satisfatoriamente todas as perguntas que as próprias premissas da teoria desperta. Construindo sobre esses “vazios” da economia clássica é que Marx produz sua própria teoria, sua própria interpretaç?o crítica do capitalismo, baseada no descobrimento de, entre outras coisas, a mais valia. O que Marx faz é pois o que Althusser chama uma leitura sintomática do “texto” da economia burguesa clássica: com uma lógica de leitura semelhante ? da psicanálises (que é, certamente, de onde Althusser extrai a express?o “sintomática”), Marx interpreta, por assim dizer, os lapsos, os “atos falhos”, as inconsist?ncias da economia clássica, e é essa própria práxis hermen?utica a que lança como resultado uma nova teoria mais acabadamente explicativa do funcionamento do capitalismo.

       Entretanto, atenç?o: quando dizemos que Marx interpreta o “texto” (em um sentido metafórico muito amplo do termo) da economia clássica, n?o estamos de modo algum caindo nessas concepç?es “textualistas” mais ou menos pós-modernas que pretendem que toda a realidade seja uma espécie de textualidade sem “lado de fora”, e infinitamente “desconstruível”. No limite, esta concepç?o conduz a uma nova e sofisticada forma de idealismo que p?e todo o peso da interpretaç?o em uma subjetividade crítica trabalhando sobre um mundo puramente “fictício”, sem referentes materiais. Esta posiç?o, que já seria discutível ainda que tolerável no campo, por exemplo, da teoria literária e estética, é a nosso ver indefensável no das estruturas e processos sociais e históricos. Obviamente, a interpretaç?o crítica é também, e antes de tudo, uma operaç?o intelectual e teórica, com um importante grau de autonomia (“relativa”), porém os objetos de sua leitura sintomática –sobre os que em seguida diremos algo mais– n?o podem ser considerados, nem sequer de maneira metafórica, como exclusivamente “fictício”. N?o nos é oculto que na passagem ? escritura (incluída a mais complexa “teorizaç?o”) da análise desses objetos há sempre uma cota, de peso variável segundo os casos, de “ficcionalidade”: as hipóteses das quais se parte s?o, em um sentido lato, “ficç?es” teóricas, e ademais as estruturas retóricas, estilísticas e inclusive sintáticas da exposiç?o de uma teoria compartilham muitos de seus traços mais básicos com as obras de ficç?o. Porém, a diferença fundamental é que uma obra de ficç?o, mesmo a mais “realista” das novelas, parte da construç?o de um “cenário” de enunciaç?o imaginária, enquanto que o tratado teórico deve começar por supor, ao menos, uma materialidade “independente” sobre a qual operou o simbólico em geral, e as “interpretaç?es” que se est?o submetendo a leitura crítica em particular, além de que –como dizíamos acima– nenhum objeto último e originário seja realmente alcançável (justamente porque foi submetido desde sempre ?s transformaç?es da interpretaç?o).

       Precisamente, uma tarefa central da “leitura sintomática” (e da crítica ideológica) consiste em discriminar, até onde for possível, as relaç?es entre realidade e ficç?o nas teorias. Isto é o que marca o limite da interpretaç?o: de outra maneira, qualquer interpretaç?o, n?o importa qu?o arbitrária ou caprichosa, seria igualmente legítima. Isto n?o é assim para Marx: tudo o que dissemos até aqui aponta para mostrar que se há interpretaç?es melhores que outras, mais “totalizadoras”, no sentido de que permitem reconstruir com maior precis?o ou funcionamento de uma “realidade” (para nosso caso, a das estruturas do capitalismo), descartando as interpretaç?es consciente ou inconscientemente “falseadas”, interessadas, ideológicas, etc.

       Tudo isso tem conseqü?ncias da máxima importância. Para começar, a leitura sintomática –tal como Althusser a identifica em Marx– constitui em si mesma um método de produç?o de conhecimento, na medida em que descobre uma particular lógica da práxis interpretativa. Levado ao seu extremo, isto significa que ainda quando se descobrisse (como alguns v?m tentando faz?-lo há muito tempo) que n?o há tal coisa como a “lei do valor” ou a “mais valia” –cuja análise por parte de Marx é, como vimos, o paradigma de leitura sintomática– a dita lógica seguiria sendo a mais eficaz para interpretar criticamente a realidade e seus “textos” segundo o modelo da práxis .

       Porém, aqui poderia interpor-se uma objeç?o: n?o havíamos dito, em nossa discuss?o da diferença de Marx com Hegel, que uma mudança de objeto conduzia indefectivelmente a uma transformaç?o no “método”? Sem dúvida, mas o que sucede é que há diferentes níveis de definiç?o do “objeto”: a análise de um objeto “particular” (ponhamos: a mais valia) permite, por assim dizer, o descobrimento de um “objeto” conceitual mais abarcador (ponhamos, a noç?o de que é restituindo a contradiç?o entre o particular-concreto “mais valia gerada pela força de trabalho” e o universal-abstrato “equival?ncia geral” que se descobrirá o “segredo” escamoteado da lógica do capitalismo) que conduz ? formulaç?o de uma hipótese universal-concreta (suponhamos que aquele que aparece como uma “Totalidade” ideológica extrai sua eficácia da operaç?o que escamoteia o “particular” que lhe permite funcionar, mas que é irredutível e a “Totalidade”, de tal maneira que é denunciando essa operaç?o como a interpretaç?o crítica pode produzir novo conhecimento sobre a realidade). Porém, ao final deste recorrido inevitável, é este último universal-concreto que se transformou no verdadeiro objeto da interpretaç?o, no sentido de que a partir dele pode construir-se uma posiç?o crítico-hermen?utica para ler “sintomaticamente” a realidade.

       E o fato (sobre o qual nos permitiremos insistir) de que o modelo desta metodologia seja a práxis social-histórica do “proletariado” tem uma segunda conseqü?ncia decisiva –que excede, como estrita lógica do conhecimento, ? exist?ncia ou n?o de um proletariado “empírico” –: trata-se de um método que, além de que seja “aplicado” pelo intelectual crítico individual, tem um substrato social-histórico, “coletivo”, mediatizado por aquela práxis. E ainda assim, a interpretaç?o crítica “individual” é somente um momento do processo de conhecimento/transformaç?o do mundo. Poucas vezes foi posto o acento, que seja de nosso conhecimento, em que uma semelhança lógica fundamental entre o marxismo e a psicanálise seja o fato evidente de que ambos s?o modos de produç?o de conhecimento nos quais a aç?o transformadora se realiza sempre na interaç?o com um “Outro” (o proletariado para Marx, o paciente para o psicanalista). Porém, inclusive sem necessidade de apelar a esta comparaç?o, recorde-se a idéia gramsciana de que os homens, potencialmente, s?o todos “filósofos”: é a reorganizaç?o de seu “sentido comum” pela práxis –e n?o a inculcaç?o exterior de uma teoria por melhor que seja– a que “atualizará” essa pot?ncia.

       Tudo o que acabamos de dizer deveria ent?o permitir uma leitura mais ajustada desse ensaio “metodológico” do marxismo por excel?ncia que é a famosa Introduç?o de 1857 aos Gundrisse. De fato, no apartado intitulado “O método da economia política” diz claramente Marx:



Se começasse, pois, pela populaç?o, teria uma representaç?o caótica do conjunto e, precisando cada vez mais, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado chegaria a abstraç?es cada vez mais sutis até alcançar as determinaç?es mais simples. Chegado a este ponto, haveria que empreender a viagem de retorno, até dar de novo com a populaç?o, porém desta vez n?o teria uma representaç?o caótica de um conjunto sen?o uma rica totalidade com múltiplas determinaç?es e relaç?es [...] Este último é, manifestamente, o método científico correto. O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinaç?es, portanto, unidade do diverso. Aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, n?o como ponto de partida, ainda que seja o efetivo ponto de partida, e, em conseqü?ncia, o ponto de partida também da intuiç?o e da representaç?o. No primeiro caminho, a representaç?o plena é volatilizada em uma determinaç?o abstrata; no segundo, as determinaç?es abstratas conduzem ? reproduç?o do concreto pelo caminho do pensamento (Marx, 1976, parte I, parágrafo 3).

Pois bem: observe-se, em primeiro lugar, que Marx termina o parágrafo anterior falando de uma re-produç?o do concreto no processo do pensamento: sem nenhuma dúvida, está aludindo ? maneira pela qual a interpretaç?o crítica re-produz (volta a produzir, em outro plano) a práxis social-histórica, que é seu modelo. O resultado desse processo é uma “síntese de múltiplas determinaç?es”, uma “unidade do diverso”: contudo, n?o se trata de uma síntese puramente “abstrata”, no sentido de que esteja vazia de “particulares-concretos”; é uma abstraç?o (posto que n?o é o “objeto” enquanto único e singular) mas que conserva as determinaç?es particulares do objeto, que entram em tens?o com a “universalidade” do conceito. Ademais, superado o “caos” das representaç?es/intuiç?es iniciais (pura acumulaç?o de “particulares concretos” sem organizaç?o nem sentido) tanto como o mero “universal-abstrato” (puro pensamento genérico sem determinaç?es concretas).

       Finalmente, devemos chamar a atenç?o sobre o fato de que Marx n?o se priva de utilizar o conceito de totalidade. Isto é de capital importância hoje, na discuss?o com os “pós-estruturalistas” e/ou “pós-modernos” (porém também, no mesmo lado da barricada por assim dizer, com certas formas dos estudos culturais, pós-coloniais, multiculturalistas e ainda do feminismo) que recusam de cheio e sem matizes essa noç?o, confundindo-a com o “essencialismo” e inclusive com o “totalitarismo” ou o “fundamentalismo” de um pensamento do Absoluto. Desgraçadamente, nesta recusa costuma-se cair em um relativismo extremo ou em um “particularismo” que é, no fundo, uma forma mais elaborada desse “caos” de representaç?es puramente singulares e justapostas sem hierarquia, o qual costuma ser tanto teórico como politicamente ineficaz (quando n?o diretamente daninho para a própria causa que se pretende defender).

       Porém, a “totalidade” marxista n?o pode de modo algum confundir-se com aquela caricatura, que melhor corresponde ? falsa totalidade adorniana, vale dizer uma abstraç?o vazia, um “equivalente geral” que esconde a determinaç?o particular-concreta que mostraria a contradiç?o, o conflito interno ? suposta “totalidade”. Do qual fala Marx é precisamente desta “totalidade” aberta e, portanto, sempre provisória, que é uma totalidade pensada (mais ainda: inevitável para pensar) que reproduz esse conflito, essa tens?o, entre sua “abstraç?o” e suas determinaç?es concretas. O processo de conhecimento que lança como resultado essa “totalidade” é o que varias vezes apontamos sob o conceito de totalizaç?o. É agora oportuno, pois, abordá-lo de cheio.



A “totalizaç?o” e o método progressivo/regressivo



O termo, já o dissemos, provém de Sartre (que o exp?e em “Quest?es de Método”, incluído como introduç?o ? Crítica da raz?o Dialética) e, ainda que tenha sido cunhado no final da década de 50 em um contexto cultural muito diferente do nosso, tornou-se novamente atual, justamente por sua importância no debate com correntes como o pós-estruturalismo e o “deconstrutivismo”. Em seu momento, o debate mais forte que sustentava Sartre era contra o stalinismo e/ou o marxismo vulgar da diamat, que incorriam em uma polarizaç?o (ou, com freqü?ncia, uma combinaç?o) entre por um lado, receitas abstratas, estas sim “essencialistas” e “totalizantes”, e por outros um empirismo ou neopositivismo antidialético, em ambos os casos com conseqü?ncias nefastas para a práxis do conhecimento/transformaç?o da realidade. (N?o pode ser por azar, em efeito, que Sartre escreva sua “Quest?es de Método” pouco tempo depois da invas?o soviética a Hungria, contrapartida político-militar dessa nefasta combinaç?o “filosófica”). Contra isso, Sartre op?e um “existencialismo” marxista que briga para conservar as particularidades (e ainda as singularidades irrepetíveis) concretas dos sujeitos de carne e osso, porém sem perder a capacidade de articulaç?o e diálogo conflituoso entre o abstrato e o concreto, que é inerente ao próprio processo de produç?o de conhecimento.

       Seu método passou para a história com o nome de progressivo/regressivo –o que já dá uma pauta, a partir da própria denominaç?o, de uma postura que rechaça o evolucionismo vulgar aplicado ao processo de conhecimento. A base filosófica de sua teoria do conhecimento é inequívoca: o que faz uma filosofia é “dar express?o ao movimento geral da sociedade”. Isto é: o modelo da produç?o de conhecimento é a práxis social-histórica. E esta é, entre outras coisas, uma forma na qual “a classe em ascens?o adquire consci?ncia de si”. Na primeira fase do capitalismo, a burguesia de comerciantes, juristas e banqueiros alcançou certa percepç?o de si mesma no cartesianismo; um século depois, na fase de proto-industrializaç?o, a burguesia de fabricantes, técnicos e homens de ci?ncia descobre-se “obscuramente” no sujeito transcendental kantiano.

       Assim: este “dar express?o ao movimento da sociedade”, esta “consci?ncia de si” das novas classes n?o é um mero reflexo “especular”. Por um lado, para ser verdadeiramente “filosófico”, o processo de conhecimento deve apresentar-se como totalizaç?o de todo o saber contemporâneo. Pelo outro, essa acumulaç?o de saber n?o é um objeto inerte, passivo: nascida do movimento da práxis, “é movimento em si, e morde no futuro [...] toda filosofia é prática, inclusive a que parece ser mais puramente contemplativa [...] uma filosofia mantém sua eficácia somente enquanto tem vida a práxis que a produziu” (Sartre, 1995). Quando o movimento filosófico se interrompe, é porque sua “crise filosófica” está expressando (de maneira complexa e mediatizada, claro está) uma crise da práxis social-histórica: como disse, entre nós, León Rozitchner, “quando a sociedade n?o sabe o que fazer a filosofia n?o sabe o que pensar”. Neste sentido preciso, o pensamento marxista encontra-se “em estado de crise”; como dizíamos, isto, fechado em 1957, volta a cobrar atualidade hoje: só que Sartre n?o extrai dessa evid?ncia a conclus?o de que o marxismo deve ser abandonado; fiel a sua própria premissa, enquanto a práxis social-histórica, que lhe deu lugar, continue atuando (isto é, enquanto exista o capitalismo e suas contradiç?es, e portanto a necessidade de sua crítica) o marxismo seguirá sendo “o horizonte insuperável de nossa época”.

       Até aqui, Sartre parece manter-se (com seu estilo particular, desde o início) na linha da “superaç?o” (a Aufhebung) de Hegel por Marx, incorporando –geralmente de maneira implícita– as contribuiç?es do Lukács de História e consci?ncia de classe (com quem, de todos modos, sustentam uma dura pol?mica a propósito do existencialismo).

Porém, a diferença específica sartreana está na incorporaç?o, dentro do marxismo, do “momento” existencialista que provém da etapa do O ser e o nada. Ali onde Lukács havia produzido um debate inclusive com Hegel, Sartre faz o mesmo com Kierkegaard: “Para Hegel o Significante [...] é o movimento do Espírito, o Significado é o homem vivo e sua objetivaç?o; para Kierkegaard, o homem vivo é o Significante: ele mesmo produz as significaç?es, e nenhuma significaç?o lhe alcança desde fora” (Sartre, 1995). O “humanismo” sartreano –em nítida oposiç?o ao universalismo abstrato hegeliano tanto como ao objetivismo elementar do positivismo, mas, também do marxismo vulgar, e quiçá ao estruturalismo que já começa a assomar– significa simplesmente que “a dor, a necessidade e o sofrimento s?o realidades humanas brutais que n?o podem ser superadas ou mudadas somente pelo conhecer”. As idéias, por si só, n?o podem transformar a realidade. Sartre n?o nega aquele caráter de antecipaç?o que as idéias podem ter –e do qual falávamos anteriormente–, sempre que se inscrevam no modelo de uma práxis transformadora, e na perspectiva da luta contra a alienaç?o, vale dizer, em termos filosóficos gerais, a separaç?o entre sujeito e objeto. Entretanto, igual a Marx, sublinha a prioridade da práxis com relaç?o ao pensamento “puro”. E igual a Kierkegaard, sustenta que a práxis n?o pode ser reduzida a um conhecimento abstrato: deve ser vivida e produzida. N?o se trata de descartar completamente Hegel, mas sim de “dialetiza-lo”: como Hegel, ele se preocupa com a objetividade do “real” e da história, mas afirmando ao mesmo tempo a singularidade concreta da experi?ncia humana.

       Esta dialética é a que cr? poder encontrar no marxismo (o de Marx). Entretanto, por que a necessidade do existencialismo (o de Sartre)? Já o adiantamos, indiretamente. O marxismo está atravessando uma crise: está, por assim dizer, detido, congelado: “Depois de haver liquidado todas nossas categorias burguesas de pensamento e transformado todas nossas idéias, o marxismo nos deixa bruscamente estacados, incapazes de satisfazer nossa necessidade de entender o mundo a partir da situaç?o particular em que nos encontramos” (como dizíamos, a crítica aponta ao marxismo “stalinista” de sua época; porém é o suficientemente geral e profunda para que hoje, novamente, nos sintamos concernidos por ela, sobretudo depois da queda dos socialismos “realmente existentes”). O marxismo “dominante” já n?o encara totalidades vivas (“síntese de múltiplas determinaç?es concretas”), como o fazia Marx, e sim “entidades fixas” –singularidades gerais, as chama Sartre, parafraseando o universal-singular de Kierkegaard. As “unidades formais” destas noç?es abstratas parecem ent?o ficar dotadas de poderes reais (o marxismo “congelado” é, neste sentido, uma express?o objetivamente cúmplice da alienaç?o, na qual o “real” aparece n?o como produto da práxis, mas sim como tendo um peso próprio, autônomo e exterior ? aç?o humana: mais tarde, na Crítica da raz?o dialética, Sartre chamará isto o prático-inerte). Assim, o marxismo sucede uma “totalidade” encerrada, um conhecimento morto; o marxismo vivo, ao contrário, é, repitamos, aberto: seu “modo de produç?o de conhecimento” é um movimento regulador, com seus “objetos” em permanente mudança e redefiniç?o.

       Qual é a estrutura e a lógica desse movimento? Para explicá-lo, devemos retomar o que começamos a dizer sobre o método progressivo/regressivo (Sartre inspira-se aqui, parcialmente, em Henri Lefebvre, que já desde o princípio da década de cinqüenta vinha tentando, nos Cahiers de Sociologie, uma articulaç?o entre sociologia e história em uma perspectiva marxista). Ao estudar, por exemplo, a realidade complexa de um grupo (ou de uma classe) social –Lefebvre refere-se concretamente ao campesinato franc?s– há, em primeiro lugar, uma complexidade horizontal que remete ao grupo humano, com suas técnicas produtivas específicas, sua relaç?o com essas técnicas, e a estrutura social correspondente, que por sua vez condiciona o comportamento do grupo, que por sua vez também depende dos outros grupos nacionais e internacionais, etc.; por outro lado, há uma complexidade vertical que é histórica: a coexist?ncia “desigual e combinada”, no “mundo” específico em estudo (o rural, neste caso), de formaç?es provenientes de distintas épocas e duraç?es, de suas transformaç?es atuais ainda que mantendo inércias do passado, etc.

Ambas “complexidades” conformam uma “totalidade” complexa e aberta, com aç?es e reaç?es entre elas. O método para estudar essa “totalidade” –segundo o delineia Sartre, reelaborando Lefebvre– é um processo em tr?s “momentos” (lógicos):



a] uma fase de descriç?o “fenomenológica”, de observaç?o sobre a base da experi?ncia e de uma teoria (ou uma série articulada de hipóteses) geral;

b] um momento “analítico-regressivo”, que retorna sobre a história do grupo em quest?o para definir, fechar e periodizar as etapas e transformaç?es dessa história;

c] um momento “progressivo-sintético”, que continua sendo histórico-genético, mas que volta do passado ao presente em uma tentativa para re-definir este último de maneira mais determinada e complexa que na fase inicial, formulando além de tudo hipóteses tendenciais para o desenvolvimento futuro.


Fica, assim, completo o movimento progressivo/regressivo. Porém, obviamente, trata-se de uma “completude” provisória, já que a história do grupo continua (salvo, completa extinç?o do mesmo; mas, na verdade, nem sequer assim: tomemos, por exemplo, uma sociedade “extinta” culturalmente por conquista ou colonizaç?o; sua história, ainda que radicalmente transformada, continuará em subterrâneo conflito com a história dos conquistadores e, portanto, o método progressivo/regressivo deverá reconstruí-la a partir de sua “originalidade” prévia, para dar conta de toda a concreta complexidade de seu presente).

       Os tr?s “momentos” que acabamos de descrever conformam a seqü?ncia que Sartre, celebremente, chama totalizaç?o/destotalizaç?o/retotalizaç?o. Seu movimento lógico, como terá observado o leitor, é notoriamente semelhante ao defendido por Marx na Introduç?o de 1857 (embora agora se incorpore o componente “exist?ncia pronta”, sobre o que ainda teremos algo para dizer). O que sucede é que, como vimos, esse movimento ficou congelado pelo triunfo de um “marxismo” vulgar, antidialético, por sua vez idealista e positivista. Neste marxismo, diz Sartre:


a análise encontra-se reduzida a uma simples cerimônia [...] consiste em eliminar detalhes, em introduzir forçadamente significado em certos acontecimentos e em desnaturalizar os fatos a fim de extrair, como substância disso, noç?es falsamente sintéticas, imutáveis e fetichizadas. Os conceitos abertos do marxismo se encontram agora cerrados, já n?o s?o claves, esquemas interpretativos, sino que aparecem como um conhecimento já totalizado. Em lugar de buscar o todo por meio das partes, e desse modo enriquecer a especificidade das partes mediante o exame de suas significaç?es polivalentes, que é o princípio heurístico, encontramos a liquidaç?o da particularidade (Sartre, 1995).

É aqui onde o “existencialismo”, outra vez, pode ser útil para uma imprescindível renovaç?o desse marxismo paralisado, e para retomar (aplicando ao próprio marxismo o método progressivo/regressivo) a riquíssima complexidade de sua história, que inclui o permanente diálogo (n?o importa qu?o conflituoso) com a totalidade do saber de uma época. A “síntese” (Aufhebung) do conhecimento n?o pode ser concebida como uma “totalidade acabada”: somente pode ser pensada no interior de uma totalizaç?o sempre em curso, em movimento, que se homologa ao modelo da práxis social-histórica: que, em certo modo, é essa práxis social-histórica construindo suas “verdades” em seu próprio movimento. A verdade resulta, diz Sartre: uma totalizaç?o que incessantemente se (des/re)totaliza a si mesma. Os fatos particulares devem ser resgatados em toda sua singularidade complexa, mas isso n?o significa que tenham em si mesmos um sentido completo: n?o s?o verdadeiros nem falsos, salvo “na medida em que se encontram relacionados, pela mediaç?o de diferentes totalidades parciais, com a totalizaç?o-em-progresso”.

       A renúncia a este movimento complexo (que em boa medida explica-se pelo próprio estancamento da práxis social-histórica dos “socialismos reais”) constitui para Sartre o calcanhar de Aquiles da teoria do conhecimento do marxismo vulgar. Porém, n?o é que n?o possam ser encontrados alguns germens –que logo se desenvolver?o até serem dominantes, por raz?es históricas– nos próprios clássicos. Sartre tem a inusitada coragem (que é a de todo “heterodoxo” que verdadeiramente quer resgatar o melhor da tradiç?o da qual provém) de n?o calar sobre o que v? como os pontos débeis, ainda dentro do próprio pensamento originário. Quando, por exemplo, Marx escreve que “a concepç?o materialista do mundo significa simplesmente a concepç?o da natureza tal como é, sem nenhum aditamento externo”, está equivocado, posto que isso pressup?e um ponto de vista “exterior”, tributário da alienaç?o do sujeito com relaç?o ao objeto, e nada neste enunciado tem a ver com a lógica que podemos identificar na Introduç?o de 1857 ou no primeiro capítulo de O Capital. Por seu lado, quando L?nin escreve que “a consci?ncia é somente o reflexo do ser, e no melhor dos casos, um reflexo somente aproximadamente exato”, também pareceria –como o Marx da citaç?o anterior– eliminar toda práxis da subjetividade crítica a favor do “prático-inerte”. Isso constitui um “desvio” positivista do espírito profundo do marxismo (que, é claro, tanto Marx como L?nin seguem fielmente em sua própria aç?o histórica). Positivista e idealista, o qual n?o é em absoluto contraditório. Como diz Sartre:


Pode-se cair no idealismo, n?o somente pela dissoluç?o da realidade na subjetividade, mas também pela negaç?o da subjetividade real em nome da objetividade. A verdade é que a subjetividade n?o é tudo nem nada: é um momento do processo objetivo (o da interiorizaç?o da exterioridade), e este momento elimina-se perpetuamente a si mesmo, e renasce perpetuamente (Sartre, 1995).

Esta última afirmaç?o é extraordinariamente importante: a Aufhebung dialética da oposiç?o sujeito/objeto na práxis do conhecimento/transformaç?o do real n?o é uma “dissoluç?o” da subjetividade na objetividade, nem vice-versa. É uma tens?o criadora que participa plenamente do processo de produç?o de conhecimento na seqü?ncia totalizaç?o/destotalizaç?o/retotalizaç?o. Da mesma maneira, nesse processo, o momento “destotalizador” de recuperaç?o da particularidade concreta e complexa do “objeto” n?o se “dissolve” completamente no conceito da “retotalizaç?o”, e sim lança, por assim dizer, um resto inassimilável pelo conceito que, precisamente, servirá de ponto de apoio para reiniciar o movimento. E, já que estamos, vale a pena indicar que nesse momento “destotalizador” sartreano, em que pese ?s similitudes superficiais, nada tem que ver com a “desconstruç?o” pós-estruturalista (ao menos em sua vers?o mais vulgarizada), que em todo caso fica nesse momento, e termina, como já sugerimos antes, reduzindo a “totalidade complexa” a um conjunto caótico de particularidades que perdem no caminho seu diálogo conflituoso, tensionado, com a fase de (re)totalizaç?o. Isto é, finalmente, perde o movimento da História.



Da dialética negativa ao inconsciente político


Vale a pena também apontar, aqui, a similitude deste raciocínio com o de Adorno em sua Dialéctica negativa, quando combate o que ele chama pensamento “identitário”, vale dizer dessa forma de pensamento que subsume totalmente a particularidade na generalidade, o concreto no abstrato, em definitivo o objeto no conceito “totalizado”. Vale dizer, citando de memória suas próprias palavras, a tirania do abstrato sobre o concreto. Tampouco para ele trata-se, nesta “tirania”, de um mero “erro” epistemológico, e sim da já mencionada racionalidade instrumental que é a que corresponde ? lógica –e ? práxis– de funcionamento e reproduç?o da modernidade tecnocrática (cujo paradigma é o capitalismo, porém que se expressa também no “socialismo” burocrático). O núcleo desta “tirania” é, novamente, a positividade de uma “dialética” que acentua o momento da afirmaç?o “superadora” do conflito entre o particular e o universal (a Aufhebung), ocultando que para o próprio Hegel –n?o importa quais foram suas “inconsist?ncias” posteriores–, e desde pelo menos a Fenomenologia do espírito, o momento verdadeiramente crítico da dialética é o da negaç?o/negatividade. E, portanto ocultando, além de tudo, que no interior da Aufhebung essa negatividade do conflito está conservada, se bem que “mediatizada” pelo conceito, e n?o “superada” (no sentido vulgar de uma dissoluç?o ou um “deixar atrás” o conflito). A conseqü?ncia que extrai Adorno é inequívoca: a dialética, para s?-lo verdadeiramente, deve ser negativa. Isto é: deve ficar tensamente “em suspenso” (a express?o é tomada por Adorno de Walter Benjamin) no momento negativo-crítico do conflito, desestimando e denunciando a ilus?o ideológica (a “instrumentalidade” de uma raz?o tirânica que tenta dissolver o concreto no abstrato) de uma falsa totalidade que, mediante a operaç?o “identitária” que subsume o objeto no conceito, pretende apresentar a imagem de uma realidade “reconciliada”, dissimulando suas fraturas, suas injustiças, seus desgarramentos, sua condiç?o de “campo de batalha”.

       Estamos frente a um estilo de pensamento que bem poderíamos chamar trágico, no sentido extenso de que na tragédia, precisamente, n?o há “reconciliaç?o”, n?o há “resoluç?o” final do conflito: ou propriamente trágico é que essa tens?o entre os pólos n?o tenha possibilidade de “superaç?o”; a mediaç?o conceitual, longe de “reconciliar” aos pólos conflituosos, os projeta, por assim dizer, aos extremos da Aufhebung, em uma “constelaç?o” de opostos em tens?o. Nisso consiste, justamente, a História: em uma permanente re-polarizaç?o e “retotalizaç?o” (n?o “totalidade”: o “Todo”, naquele sentido de uma realidade acabada e reconciliada consigo mesma é para Adorno o n?o-verdadeiro por excel?ncia) de constelaç?es conflituosas que nunca alcançam uma plena reconciliaç?o. Nisto consiste, o verdadeiro processo de conhecimento crítico: na produç?o de uma “consci?ncia” do real como estruturalmente conflituoso, contra a funç?o central da ideologia instrumentalista dominante, que é a de faz?-lo aparecer como reconciliado e harmônico. Muitas vezes foi dito que o pensamento de Marx, precisamente, participa desta imago de reconciliaç?o e harmonia, se bem que projetada para o futuro, o “fim da historia” no “comunismo” (recentemente Haydem White, por exemplo, qualificado este suposto estilo de pensamento marxiano como dramático, em contraposiç?o ao pensamento trágico de, coloquemos, um Nietzsche). N?o estamos de acordo. Para começar, as imagens que em alguma –muito escassa–ocasi?o desenha Marx do que poderia ser o futuro “comunismo” s?o significativamente difusas e metafóricas: Marx n?o tinha a si próprio como um profeta (recorde-se seu indissimulado fastio para os discursos “utópicos”) e sim como um crítico revolucionário e “científico” da realidade. Ao cabo, o que podia prever como “reconciliaç?o” no futuro “comunismo” –baseando-se nessa crítica científica– estava vinculada ao desaparecimento de um motivo de conflito (é certo que central e constitutivo da própria estrutura lógica do capitalismo): o colocado pela propriedade privada dos meios de produç?o e todas suas complexas derivaç?es político-ideológicas. Porém, de nenhuma maneira isto pode ser confundido com a profecia de um “novo mundo feliz” no qual desapareceriam magicamente os conflitos entre os homens: ao contrário, poder-se-ia dizer que somente ent?o estaríamos em condiç?es de conhecer exaustivamente os verdadeiros conflitos humanos, que n?o estariam atravessados ou determinados “em última instância” pela estrutura sócio-econômica. Contudo, a bem da verdade, tudo isso é pura especulaç?o. O que os pensadores heterodoxos e críticos –é o caso que agora estamos tratando de Adorno–recuperam de Marx (ainda que n?o somente dele, claro está) é justamente, como n?o nos cansaremos de repetir, essa negatividade crítica para a análise da realidade sócio-econômica, política, cultural. Outra vez, ent?o, a produç?o de saber crítico é aqui inseparável, por um lado, da práxis, e pelo outro –que em verdade é o mesmo, abordado por outro lado– da história e da arte. Deixemos por um momento esta última “entrada” pelo lado do estético, e nos perguntemos pela quest?o da história.

       Entendida ? maneira “adorniana” (que é, em rigor, a maneira “benjaminiana”: foi de Walter Benjamin que Adorno retomou a inspiraç?o) a história é, como diria o próprio Benjamin, a história dos vencidos –a outra história, a dos vencedores, é a que encerra a idéia de “progresso”. Essa história n?o é linear nem evolutiva: é intermitente, subterrânea, descontínua, espasmódica. Somente cada tanto –por exemplo, nos momentos de “crise de hegemonia”, como diria Gramsci, ou desde o início de crise abertamente revolucionária, ou mais geralmente de catástrofe social e cultural– essa história emerge ? superfície, e ent?o toda a história se v? convulsionada e redefinida. Enquanto isso permanece soterrada, transcorre “fora da cena”, mas n?o por isso imóvel e sem conseqü?ncias: ao contrário, é em seu próprio nível o “determinante em última instância” do que ocorre na superfície, é o inconsciente político (em seguida voltaremos sobre este conceito) da imago de “progresso” dos vencedores, sobre a qual insistentemente retorna desde o reprimido para pôr em quest?o a falsa totalidade com cuja imagem apresenta-se a história dos vencedores. “Inconsciente”/“Imago”/“retorno do reprimido”: é indubitável a origem freudiano destes conceitos, e sem dúvida um dos achados teórico-críticos centrais de Benjamin e Adorno (e da Escola de Frankfurt em seu conjunto) é o do paralelismo, ou pelo menos a homologia, que pode encontrar-se, ainda que em campos t?o distintos, entre os modos de produç?o de conhecimento de Marx e Freud. No que diz respeito a quest?o particular que estamos tratando, essa homologia pode ser sintetizados nos dois pontos seguintes:



a]        A “história dos vencidos” pode tomar-se como uma metáfora do inconsciente freudiano: igual a ela, as formaç?es do inconsciente (lapsos, atos “falhos”, esquecimentos, sonhos, recordaç?es “encobridores”, “fantasmas”, etc.) insistem em aparecer surpreendentemente, desarticulando a “falsa totalidade” das idéias “claras e distintas” do assim chamado “sistema percepç?o/consci?ncia”, e entrando em conflito irresolúvel com dito sistema. Trata-se de um óbvio paralelismo com a dialética negativa adorniana, que p?e em evid?ncia o conflito igualmente irresolúvel entre o particular concreto e o universal abstrato de um “equivalente geral” conceitual que pretende apresentar o mundo do real como uma estrutura harmônica, consistente, completa e reconciliada.



2]       Mesmo que a “origem” do conflito possa fechar-se no passado, a produç?o de seu conhecimento necessariamente parte de (e se interessa em) seus efeitos sobre o presente. O trabalho de reconstruç?o “arqueológica” –já fosse o que realiza o psicanalista junto com seu paciente, como o “historiador materialista” ao que alude Benjamín– n?o consiste –segundo o enuncia celebremente o próprio Benjamin em suas “Teses de filosofia da história”– na reconstruç?o dos fatos “tal qual realmente ocorreram”, e sim na produç?o de seus efeitos “tal como relampagueam neste instante de perigo”. O que faz o “historiador materialista” n?o é (para continuar com a metáfora arqueológica) reconstruir o edifício do passado, a partir de suas ruínas encontradas, na exatid?o que efetivamente tinha nesse passado, e sim precisamente ao revés, transformar em ruínas a imagem que dele temos, para, sobre estas “ruínas”, construir algo novo. Esse trabalho de “transformaç?o em ruínas” apresenta, assim mesmo, um óbvio paralelo tanto com a práxis psicanalítica como com a crítica da ideologia dominante, como com a “insist?ncia” de uma práxis social que por si mesma demonstra o inacabamento do mundo do real, da história, da constituiç?o subjetiva, e é claro, da produç?o de conhecimento.

Como se pode observar, esses paralelismos heurísticos sup?em uma concepç?o do tempo histórico muito alijada dos prejuízos evolucionistas, positivistas ou “progressistas” dominantes desde o século XVIII e XIX. A história n?o é linear nem teleológica, e sim está “determinada” retroativamente pelas necessidades de uma práxis do presente, que “retroatua” sobre o prático-inerte das práxis “congeladas” do passado. O presente, dessa maneira, condensa e desloca (“condensaç?o” e “deslocamento”, como se sabe, s?o as duas operaç?es básicas da lógica do inconsciente segundo Freud) diferentes “tempos” históricos que convivem conflituosamente sob a dominaç?o de um deles, como na célebre teoria marxista do desenvolvimento desigual e combinado.

       Assim: estes elementos de “paralelismo” (ou de analogia/homologia, se se prefere) s?o os que permitiram Fredric Jameson falar de um inconsciente político atuando “por baixo” da história, das relaç?es sociais, da cultura em geral. “Político” no sentido amplo, mas estrito e fundante que, em uma sociedade dividida em classes na qual o real é conformado pelas relaç?es de dominaç?o, por detrás das estruturas e “totalidades” da cultura se encontrará sempre –ainda que, como dissemos, somente intermitentemente isso venha a emergir ? “consci?ncia”– a dimens?o conflituosa do social-histórico, que é ao mesmo tempo produzida e ocultada pelo “pensamento identitário”. Em certo sentido, a cultura dominante é uma gigantesca empresa de elaboraç?o do que o próprio Jameson chama estratégias de contenç?o que impeçam o pleno afloramento do inconsciente político ? superfície. E s?o indubitáveis outros paralelismo que poderíamos encontrar aqui, desta vez com, novamente, a noç?o gramsciana de hegemonia, que entre outras funç?es tem a de organizar as percepç?es do real por parte das grandes massas. Por sua vez, no capitalismo tardio (e mais ainda na sim chamada “pós-modernidade”, que na linguagem jamesoniana é sua lógica cultural) esta tarefa fica destinada n?o somente aos Aparatos Ideológicos do Estado (AIE) de Althusser, mas também, e com crescente importância dado o processo dominante de privatizaç?o globalizada, ? industria cultural de Adorno e Horkheimer, que n?o se limita a ser um fenômeno sócio-econômico e cultural parcial deste capitalismo tardio: é, em certo modo, sua própria lógica de funcionamento, enquanto submiss?o plena da particularidade concreta na universalidade abstrata de um “equivalente geral” (cuja matriz é o pleno fetichismo da mercadoria na sociedade chamada “de consumo”). Esta lógica de funcionamento proporciona o modelo de um pensamento que tende inevitavelmente a “naturalizar” a imagem de um mundo “essencialmente” reconciliado, no qual as “particularidades” que pareceriam desmentir essa imagem (digamos, para simplificar: a injusta distribuiç?o mundial da riqueza e a dramática polarizaç?o social global, assim como as guerras imperiais de todo tipo) aparecem como meros e ef?meros desvios de um sistema que em suas estruturas básicas está “reconciliado”, e n?o –para insistir com o jarg?o psicanalítico– com o que poderíamos chamar assaltos do real que foi “forcluido” pelo pensamento identitário.

       O conhecimento crítico baseado na práxis, tal como o representam os “marxismos” complexos e abertos dos quais vimos falando, é, pois nesse plano, um processo de construç?o das condiç?es que permitam fazer “visível” o inconsciente político da cultura. Temos insistido á exaust?o –e acabamos de faz?-lo uma vez mais– que essa construç?o é em si mesma uma práxis. O que significa: uma transformaç?o do real que, no entanto, parte do próprio real a transformar. Temos dito também que, portanto, n?o se trata aqui de nenhuma onipot?ncia iluminista que chega desde fora com uma teoria perfeitamente acabada para substituir os “erros” da ideologia ou do pensamento identitário. O que faz o conhecimento crítico é interrogar as aparentes evid?ncias desse pensamento identitário (do “sentido comum” em sua acepç?o gramsciana) para reorientar a lógica sob a qual foram historicamente construídas, na direç?o de uma re-totalizaç?o (sempre provisória) que começa por pôr de forma clara que se trata, precisamente, de uma construç?o histórica e n?o de um dato “natural”. Para colocar ao desnudo (fazer o strip-tease, dizia celebremente Sartre) o conflito n?o resolvido entre o particular e o universal, entre o objeto e o conceito. Para subtraí-lo, em definitivo, ? “tirania do abstrato”. É evidente –se nos atemos a uma “filosofia da práxis”– que somente a aç?o coletiva (teoricamente “informada”) dos “vencidos” poderá levar ?s últimas conseqü?ncias essa transformaç?o, posto que o pensamento identitário tampouco é ele próprio uma abstraç?o, mas sim a “teoria” de suas próprias bases materiais. Porém, o conhecimento crítico, inclusive em seus aspectos mais autonomamente “teóricos”, é um momento indispensável desse processo. Como tal momento, entretanto, e se pretendemos ser conseqüentes com a “insubordinaç?o do concreto” contra aquela “tirania do abstrato”, n?o pode estar sujeito aos “equivalentes gerais” de um receituário universalmente aplicável, com demasiada freqü?ncia (e com efeitos que muitas vezes podem ser qualificados de trágicos) tem pretendido faz?-lo a esquerda “clássica”.



Conhecimento crítico e inconsciente político na/a partir da periferia



Para finalizar: este modo de produç?o de conhecimento, representado por estes marxismos complexos, é útil –ou se preferir necessário– para a elaboraç?o de uma teoria crítica “periférica” em nossas sociedades semi/neo/pós-colonizadas? Serve como input de uma filosofia da libertaç?o “periférica” como a postulada, entre outros, por Enrique Dussel? Durante muito tempo (e com renovados brios na última década e meia, a partir da emerg?ncia da chamada teoria pós-colonial) se veio marcando os “erros” de Marx e de muitos “marxismos” na análise do que mais tarde foi batizado como Terceiro Mundo. O (compreensível e desculpável, mas n?o menos existente) “eurocentrismo” de Marx e Engels –este último chegou a falar dos “povos sem história”, em uma muito discutível recaída no pior do hegelianismo–, assim como seu “proletariadocentrismo” (também compreensível para a situaç?o européia, porém dificilmente aplicável ? realidade latino-americana, africana ou asiática de ent?o) e seu “internacionalcentrismo” (conseqü?ncia dos dois “centrismos” anteriores) lhes haviam limitado seriamente a perspectiva de uma conseqüente análise e conhecimento crítico das complexas realidades extra-européias, conseqü?ncia da colonizaç?o e da “periferizaç?o” de boa parte do mundo como efeito da expans?o proto-burguesa –ou liquidamente burguesa a partir do século XVIII.

       Estas colocaç?es n?o est?o totalmente equivocadas, especialmente quando se restringem aos famosos artigos de Marx na década de 1850 a propósito da colonizaç?o britânica na Índia –nos quais certamente, fazendo gala de um certo esquematismo evolucionista, exagera ou mal entende os benefícios de uma “translaç?o” do capitalismo desenvolvido para uma sociedade “atrasada”–, ou mais ainda, aos breves e apressurados artigos jornalísticos sobre América Latina –nos quais há que reconhecer que demonstra uma considerável ignorância sobre seus processos de descolonizaç?o e construç?o nacional, chegando a tratar Simon Bolívar de “aventureiro” e outros disparates semelhantes. É certo também que –ao menos depois de L?nin ou Trotsky, provenientes eles mesmos da periferia ou semi-periferia somente um pouco “européia”– pouco ou nada tiveram para dizer os heterodoxos marxistas ocidentais sobre a quest?o (ao menos até passada a primeira metade do século XX).

Duas honradíssimas exceç?es a isto s?o, é claro, os casos de Gramsci (que embora n?o se tenha referido estritamente ao Terceiro Mundo, estudou profundamente a situaç?o periférica em suas célebres análises da “quest?o meridional”) e Sartre (que já desde a década de 40 realizou implacáveis análises do colonialismo franc?s na África: e curiosamente, segundo muitos de seus biógrafos, foi este compromisso com as lutas anticoloniais que terminou conduzindo-o a um marxismo ao qual antes somente se havia aproximado de maneira tímida e lateral). Porém, é verdade que, com exceç?es escassas e marginais, n?o se encontrar?o textos importantes sobre o tema em Lukács, Bloch, Benjamin, Adorno, Horkheimer ou Althusser.

       Assim, e para regressar a nossa pergunta originária: bastam estas colocaç?es para induzir-nos a desancar por inoperantes as categorias –e muito menos a lógica de pensamento– que vimos analisando nas páginas anteriores? N?o cremos. Em primeiro lugar, por raz?es históricas: além das sempre possíveis e pertinentes críticas parciais que se podem fazer, muito –para n?o dizer a enorme maioria– do pensamento crítico “periférico” do século XX que se propôs, justamente, pensar criticamente a condiç?o colonial e “neocolonial” do outrora chamado Terceiro Mundo, se reivindicou diretamente “marxista”, ou pelo menos acusou forte recibo das categorias centrais do(s) marxismo(s): de Mariátegui ? teoria da depend?ncia, de Frantz Fanon ? teoria pós-colonial, de Darcy Ribeiro a Samir Amin, de André Gunder Frank ? teologia da libertaç?o, de Mela a Aijaz Ahmad, etc. (e haveria que agregar, inclusive, certas teorias “primeiro mundistas” de grande utilidade para o pensamento crítico periférico, como por exemplo a teoria do sistema-mundo de Wallerstein ou as críticas ao pós-modernismo “globalizado” do já citado Jameson), nenhum deles teria conseguido sua reconhecida profundidade e complexidade de análise sem o concurso central de certas categorias marxianas básicas.

       Porém, mais importante, trata-se novamente da lógica e do método de pensamento. Esperamos que, de todo o anterior, tenham ficado claros ao menos os seguintes pontos:


1]       A produç?o de conhecimento crítico parte do reconhecimento de um conflito, de uma dialética negativa (irresolúvel no puro plano das idéias) entre a particularidade e o que aparece, ou pretende postular-se como, totalidade. A opç?o “binária” entre particularismo e universalismos é falsa e ideológica: o aut?ntico “universalismo” crítico é o conflito entre a parte e o todo, entre o particular concreto e o universal abstrato. E é a perman?ncia desse conflito que n?o permite que o universal feche-se sobre si mesmo.

2]       Se isso é assim, ent?o é possível desnudar as “bases materiais” do que em principio estaria impedindo a produç?o de conhecimento crítico de/na periferia: a saber, o triunfo da falsa totalidade colonial/neocolonial/imperialista. A partir de 1492 (para utilizar uma data emblemática), uma civilizaç?o (= particular concreto), a européia ocidental, conseguiu, graças ? eficácia técnico-material de sua racionalidade instrumental, aparecer como a civilizaç?o, como sinônimo da Raz?o e do Progresso como tais (= universal abstrato), ocultando (o forcluindo, para retornar ao linguagem psicanalítica) o conflito com seu próprio particularismo. É tarefa do conhecimento crítico, como acabamos de dizer, a de produzir, para a consci?ncia, o saber sobre esse conflito.

3]       Porém, isso significa ent?o, que, a rigor da verdade, essa civilizaç?o que chamamos o “Ocidente moderno” é uma (auto)representaç?o da “totalidade” constituída sobre a base da exclus?o da totalidade dessa mesma “periferia” que –através da conquista violenta e da colonizaç?o– fez possível, transformou, o “Ocidente” na cultura dominante. É também tarefa do conhecimento crítico, ent?o, restituir e re-construir o conflito entre a “parte” e o “todo” dessa dialética de opress?o/fagocitaç?o/expuls?o.


Estas s?o as condiç?es mínimas de produç?o de um conhecimento crítico “periférico” capaz de combater –a partir de nossa própria situaç?o, como diria Sartre– o “eurocentrismo” e a colonialidade do saber ? qual aludiu Aníbal Quijano, um fenômeno de longa data histórica mas que, longe de dissolver-se, se v? na atualidade reforçado com a mundializaç?o capitalista (eufemisticamente chamada “globalizaç?o”): “reforçado”, dizemos, no sentido de que aparece duplamente disfarçado nas apelaç?es “politicamente corretas” do “multiculturalismo” e outros ideologemas de uma suposta coexist?ncia pacífica dos “particularismos” que –quando s?o celebrados como índice do triunfo de uma globalizaç?o “democrática” – n?o fazem mais que substituir a atenç?o da poderosa unidade subterrânea do poder global, em outra (porém ainda mais sutil) típica operaç?o de pars pro toto fetichizada. A essa “novidade” da globalizaç?o (cuja lógica profunda de poder, no entanto, está bem longe de ser “nova”) corresponde uma imagem da produç?o de conhecimento que faz deste ou uma universalidade abstrata “desterritorializada” (= a Ci?ncia), ou uma completa “particularidade” n?o menos abstrata (= o “conhecimento local”) ao qual n?o afetaria a dominaç?o do “universal”. É claro, ambos extremos complementares s?o igualmente falsos e fetichistas. O que se requer é uma construç?o de conhecimento que denuncie, novamente, o conflito inerente ao que Walter Mignolo chama o lugar geopoliticamente marcado do conhecimento.

       Todavia, se há um conflito, ent?o o conhecimento crítico deve levar em conta as duas partes desse conflito. Deve instalar-se no centro mesmo dessa tens?o, desse “campo de batalha”. Queremos dizer: faríamos pouco favor ? “filosofia da libertaç?o” renunciando ao melhor desses modos de produç?o de conhecimento crítico produzidos também dentro da modernidade européia, e em primeiro lugar o/os marxismo/s. Isso poderia equivaler, paradoxalmente, a colocar-nos precisamente nesse lugar de exterioridade, de “outredade” radical e absoluta na qual o pensamento dominante (incluindo, e quiçá principalmente, a certo pensamento “progressista”) quisesse enclaustrar-nos, como um reforço da operaç?o fetichista mediante a qual se nos exclui do âmbito da produç?o de conhecimento (já se sabe: mesmo para as ideologias “progressistas”, a periferia é o espaço do sentimento, da arte, da express?o poética, e n?o o da racionalidade crítico-científica). Pelo contrário, é imprescindível reapropriar-se, desde nossa própria e conflituosa situaç?o, da contestaç?o epistemológica que o marxismo soube levantar contra os modos hegemônicos de produç?o do saber, desde o início “corrigindo” tudo o que nele seja “corrigível”, mas n?o abdicando de antem?o a situar-nos, com nosso próprio olhar, nesse “horizonte” de nosso tempo.



O conhecimento crítico em “estado de emerg?ncia”



Nas últimas tr?s ou quatro décadas, no âmbito acad?mico das sociedades centrais, múltiplas formas de um “pensamento crítico” n?o diretamente (e, por vezes, nem sequer indiretamente) inspiradas no marxismo, ou separando-se progressivamente dele, emergiram com o objetivo freqüentemente explícito de substituir esse “modo de produç?o de conhecimento” sem por isso perder seu posicionamento crítico. Desde a “microfísica do poder” de um Foucault ? “rizomática dos fluxos desejosos” de Deleuze/Guattari, desde o “deconstrucionismo” de Derrida ? “teoria das multid?es” de Negri/Hardt ou Paolo Virno, desde a “filosofia do acontecimento” de Alain Badiou ? “democracia radical” pós-marxista de Laclau/Mouffe –para somente nomear algumas das mais importantes “inovaç?es” na teoria crítica das décadas recentes–, buscou-se uma substituiç?o n?o-marxista, pós-marxista ou inclusive antimarxista da teoria crítica. E esta tend?ncia encontrou forte eco nos estudos culturais n?o somente provenientes das academias “centrais”, mas também produzidos na própria periferia.

       Sem dúvida, este impulso obedece a raz?es ambíguas e até contraditórias: por um lado –para começar pelo aspecto “autocrítico” da quest?o–, é um sintoma de certa e inegável crise alcançada pelo marxismo no contexto da chamada “pós-modernidade”; crise teórica (a ortodoxia ritualista de um marxismo sectário incapacitado para dar conta das novas problemáticas colocadas em todos os planos pelas transformaç?es globais depois da segunda pós-guerra) tanto como político-prática (a profunda ruína dos assim chamados “socialismos reais” da Europa do Leste, que já começou a evidenciar-se há meio século com o reexame das políticas t?o brutais como ineficientes do stalinismo e sua influ?ncia negativa sobre as promessas emancipatórias do marxismo originário). Por outro lado, é necessário reconhecer que aquelas “novidades” teóricas, tentando n?o abandonar o impulso questionador do qual em outra parte chamamos o modernismo (auto)crítico representado por Marx ou Freud (e depois por figuras como Gramsci, Lukács, Bloch, a Escola de Frankfurt em seu conjunto, Sartre, Merleau-Ponty, Althusser, Jameson, etc.), procuraram redefinir temas e métodos de investigaç?o e análise crítica que necessariamente haviam ficado fora do alcance daqueles grandes “clássicos” do pensamento crítico. Os múltiplos “giros” (lingüístico, semiótico, hermen?utico, estético-cultural) produzidos ao longo do século XX, mas progressivamente protagônicos na teoria a partir dos anos sessenta e setenta, sem nenhuma dúvida projetaram frente da cena uma série de quest?es (a linguagem, a subjetividade, os “imaginários”, a “textualidade”, os limites do “logocentrismo”, as “novas” formas de identidade étnica e sexual, mais tarde o “culturalismo”, a “pós-colonialidade”, e assim seguindo), que os clássicos, insistimos, n?o podiam haver tomado em conta em virtude de que s?o problemáticas emergidas e visibilizadas a partir daquelas transformaç?es relativamente muito recentes na economia, na política, na sociedade e na cultura mundiais. Neste sentido, trata-se, na maioria dos casos que citamos e em muitos outros, de formas de pensamento irrenunciáveis –ao menos, repetimos, pelos novos campos de interesse que t?m aberto– para qualquer “intelectual crítico”.

       No entanto, faz-se mister advertir sobre os riscos que para esse mesmo pensamento crítico entranha o abandono irreflexivo do modo de produç?o de conhecimento marxiano. Ao longo deste ensaio tentamos mostrar que ele vai muito além de um mero repertório de “temas” de época que obrigariam a desancar o “método” junto com os “objetos” para cujo conhecimento crítico deste “método” havia sido criado. Para começar, temos reiterado até ? exaust?o que uma teoria do conhecimento inspirada no critério central da práxis, como é a de Marx e seus heterog?neos sucessores, n?o pode ser assimilada aos parâmetros positivistas de uma distinç?o rígida entre “método” e “objeto”. N?o estamos frente ? quest?o de alguns “objetos” fixos e preexistentes ? espera do “método” que mais adequadamente permita estudá-los (como a gravidade ante a ci?ncia newtoniana, digamos), e sim que a práxis que fundamenta o “método” de Marx constrói e produz seus próprios “objetos”, ademais de reconstruir e reproduzir os “objetos” que s?o produto da práxis social-histórica em sua complexa “totalizaç?o”.

       Por outro lado, esses “objetos” produzidos pelo modo de conhecimento marxista (o capitalismo, a exploraç?o, a mais valia, a luta de classes, o imperialismo, para somente enumerar os mais genéricos), embora indubitável que sofreram transformaç?es radicais desde os tempos de Marx (inclusive desde os da Escola de Frankfurt, por exemplo) est?o muito longe de haver desaparecido como tais. Ao contrário, em muitos sentidos profundamente em níveis inéditos, que o próprio Marx e seus sucessores “clássicos” n?o podiam tampouco ter previsto. É por isso que, ao menos nesse sentido, o marxismo continua sendo –para citar outra vez Sartre– “o horizonte inevitável de nosso tempo”. Obviamente: o horizonte ampliou-se espetacularmente, e também ficou mais complexo de maneira abrumadora. Inclusive poderíamos dizer, insistindo com a metáfora, que se multiplicou: talvez já n?o possamos ter um só horizonte. Porém, precisamente, o “triunfo” global do capitalismo (que vai estreitamente ligado com seu completo e mais que evidente fracasso como, auto denominado, projeto “civilizatório”), tornou-se imperativo a necessidade de contar com cada vez mais consistente teoria do conhecimento crítico do sistema.

       É justamente essa consist?ncia que vem perdendo, em benefício do que em algum momento deu em chamar-se “pensamento débil”: algo que, por mais sofisticaç?o filosófica com a qual possa teorizar-se, em última instância representa um tipo de relativismo eclético que renuncia a adotar posiç?es firmes frente ? materialidade dos conflitos históricos que est?o no núcleo de toda forma de pensamento, ainda que por suposto nenhuma forma de pensamento possa reduzir-se exclusivamente a isso. Porém, n?o é reducionismo constatar que, em muitos sentidos, a emerg?ncia deste “pensamento débil” –produzida entre o fim dos anos setenta e princípio dos anos oitenta– coincide com a crise simultânea dos “socialismos reais” (assim como das experi?ncias de “nacionalismo burgu?s” nas sociedades ex coloniais) e do capitalismo “real”, crise esta última que resultou em uma reconvers?o (técnico-econômica, mas também político-ideológica) profundamente retrógrada e reacionária, resultando em uma verdadeira catástrofe para os impulsos transformadores e críticos do período anterior (o que vai do fim da II Guerra Mundial até princípio da década de setenta). No plano da teoria, o abandono do projeto socialista tanto como do “terceiro mundismo” clássico, resultou por sua vez em uma substituiç?o dos vínculos do “texto” com a “realidade” (n?o importa qu?o complexa e mediatizada fosse essa relaç?o), pela pura “textualidade” e o encerramento dos intelectuais “críticos” em um espaço abstratamente acad?mico-especulativo. Sobre isto é necessário ser claro, mesmo com risco de parecer algo dogmático: como bem disse Aijaz Ahmad,


uma posiç?o teórica que despacha a história material como simples “grande relato” teleológico do modo-de-produç?o, a própria aç?o histórica como “mito das origens”, as naç?es e estados como indefectivelmente coercitivos, as classes como meros “construtos discursivos” [...] uma posiç?o teórica semelhante é, no mais preciso sentido destas palavras, repressiva e burguesa. Suprime as próprias condiç?es de inteligibilidade dentro das quais podem ser teorizados os fatos fundamentais de nossa época (Ahmad, 1992).

Como acabamos de dizer, de modo algum se pode recusar os novos “objetos” produzidos pelo pensamento crítico pós-marxista. As materialidades históricas, as naç?es, os estados ou as classes, como vimos, s?o também, sem dúvida, “construç?es discursivas”. Porém, é necessário contar com uma teoria de sua articulaç?o (e seus níveis de “sobredeterminaç?o”, para diz?-lo ? maneira althusseriana) com as realidades persistentes que implicam uma continuidade na lógica –n?o importa quais sejam as descontinuidades nas formas– da dominaç?o, da exploraç?o ou da injustiça. Um pouco excessivamente deslumbradas pelas “novidades” da pós-modernidade –um deslumbramento que em boa medida pode ser explicado pela própria aç?o da indústria cultural e da globalizaç?o cultural/comunicacional–, as teorias pós-marxistas precipitaram-se no proverbial erro de jogar o beb? junto com a água suja. Isso provocou o paradoxo de que, em boa medida, as teorias críticas pós-marxistas tenham terminado por repetir aquilo que Lukács, ironicamente, imputava a Kant: deteve sua ânsia de conhecimento frente ?s portas da coisa em si do capitalismo. De fato, uma das conseqü?ncias do “abandono” do critério da práxis como central para o modo de produç?o de conhecimento crítico é sua substituiç?o pelo que poderíamos chamar o critério da pura leitura de uma “realidade” considerada –e n?o sempre metaforicamente– como mera “textualidade”.

       Com o risco de resultar tedioso, queremos que fique claro o seguinte: de nenhuma maneira estamos recusando per se a idéia de leitura crítica dos textos, nem sequer da idéia de que, a certo nível, a “realidade” pode considerar-se como constituída também pelos “textos” (lingüísticos, visuais, massmediáticos ou o que seja) sob os quais os sujeitos a percebem e interpretam: depois dos achados da psicanálise, a lingüística ou a hermen?utica do século XX, semelhante pretens?o seria uma necessidade. O que estamos recusando é a idéia (ou melhor: o ideologema) de uma “exclusividade textual” que negue uma autonomia relativa do real –sem a qual, por outra parte, a categoria de “texto” careceria de sentido, pois ent?o, de que coisa se diferenciaria o “texto” para reclamar sua própria “autonomia”? – que no limite recai no que anteriormente chamamos uma interpretaç?o (ou uma “leitura”) passiva da realidade, portanto sempre já constituída. Paradoxalmente, isto poderia estar liquidando calmamente os aspectos mais autenticamente críticos do mesmo “pós-estruturalismo” que nos ensinou (depois de Marx e Freud, desde já) a “ler” a realidade, como construç?o histórica e n?o como “originariedade” incomovível.

       No entanto, há sinais de que esta tend?ncia poderia estar começando a reverter-se, ao calor dos acontecimentos mundiais dos últimos anos, que desnudaram por completo os limites literalmente mortais da realidade do suposto projeto da “civilizaç?o” do capital: nenhum pensador crítico com um mínimo de lucidez e honestidade intelectual, “seja” ou n?o marxista, pode já abrigar dúvida alguma sobre o verdadeiro caráter de uma “globalizaç?o” (uma mundializaç?o da lei do valor, como a chama Samir Amin com maior precis?o teórica e política) que em muito pouco tempo mais poderia precipitar o mundo para uma verdadeira e final catástrofe social, cultural e ecológica, e que já o precipitou (sobretudo depois dos disparatados atentados de 11/9) a um schmittiano estado de guerra civil permanente e de estado de exceç?o e emerg?ncia contínuo, na qual tr?s quartas partes da humanidade ao menos tem sido reduzidas ? situaç?o de reféns da concentraç?o econômica-política-militar-tecnológica, assim como de reféns das pinças fatais de dois (e n?o um) fundamentalismos genocidas. Na qual todas as ilus?es de uma democracia mundial “extensa” ou de um “multiculturalismo” rigorosamente respeitoso, ou inclusive promotor, das diferenças aut?nticas estalaram em mil pedaços sob os impulsos militaristas, neofascistas ou neo-racistas emergidos como “soluç?o” desesperada ? crise mundializada do esgotado projeto capitalista. A todo o qual poderia agregar-se, repitamos, uma verdadeira catástrofe ecológica –produto, em boa medida, dos abusos da dominaç?o instrumental da natureza que a Escola de Frankfurt já denunciava em suas primeiras reflex?es– que a n?o muito longo prazo p?e em perigo a mera sobreviv?ncia biológica da espécie. Uma vez mais, esta situaç?o que bem pode voltar a qualificar-se de trágica, torna da máxima urg?ncia (política, social, cultural, ética, e já n?o simplesmente “epistemológica”) a reconstruç?o de nossos modos de produç?o de um saber crítico complexo, aberto e heterodoxo, mas firmemente comprometido.




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NOTAS



* Professor Titular de Teoria Política, Faculdade de Ci?ncias Sociais, Universidade de Buenos Aires, e Professor Titular de Antropologia da Arte, Faculdade de Filosofia e Letras, UBA.

**Traduç?o de Simone Rezende da Silva

Como citar este documento: Grüner, Eduardo. Leituras culpadas. Marx(ismos) e a práxis do conhecimento. En publicacion: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas Boron, Atilio A.; Amadeo, Javier; Gonzalez, Sabrina. 2007 ISBN 978987118367-8
Acceso al texto completo: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/campus/marxispt/cap. 4.doc
Descriptores Tematicos: Marxismo, Teoria Politica, Filosofia Politica, Pensamiento Critico, Conocimiento Cientifico
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